Monster (2023)

Quem é o monstro?

Não é sempre que temos a oportunidade de assistir a um filme como “Monster”. Na verdade, fazia algum tempo que eu não era tão impactado por uma narrativa como agora, e tenho certeza de que assisti a um dos melhores filmes da minha vida. Com direção de Hirokazu Kore-eda e roteiro de Yuji Sakamoto, “Monster” teve a sua estreia no 76º Festival de Cannes, em 2023, onde recebeu o prêmio de Melhor Roteiro, bem como o Queer Palm, prêmio dedicado ao melhor filme com temática LGBTQIA+ de Cannes. Sensível, humano, poderoso e belo, o filme aborda temas importantes com cuidado e verdade, tocando a audiência e propondo reflexões e discussões. Atualmente, o filme conta com uma aprovação de 96% da crítica especializada e 92% do público no Rotten Tomatoes.

Com uma direção inteligente, atuações impecáveis e um roteiro complexo e não-linear, “Monster” questiona, por si só, as coisas que tomamos como verdade – e nos faz enfrentar tudo aquilo que ignoramos, propositalmente ou não. A não-linearidade da narrativa enriquece a experiência do filme, conferindo às cenas já “conhecidas” novos significados conforme vamos recebendo mais informações, preenchendo lacunas, encaixando peças… e revemos conclusões a que chegamos com base na informação unilateral que tínhamos, e que se prova insuficiente ao passo em que o escopo se amplia. Fico pensando em quantos julgamentos já fizemos sem ter material o suficiente para tal. Fico pensando no quanto pessoas ao nosso redor estão enfrentando secretamente e não temos ideia.

Particularmente, eu sempre fui apaixonado por histórias que são contadas de pontos de vistas diferentes, com as informações se acumulando conforme chegamos a uma ideia mais “completa” dos acontecimentos de fato, e “Monster” faz isso com uma destreza absurda, entregando uma narrativa cheia de detalhes, motivações, sentimentos… é curiosa a experiência de assistir ao filme e ver os personagens “se transformando” em frente aos nossos olhos, conforme nos são revelados diferentes catalisadores que levaram àquelas ações, reações e conclusões. O filme narra a vida de alguns personagens em torno de Mugino Minato do dia de um incêndio até o dia de um deslizamento de terra – e tudo o que aconteceu a essas pessoas entre esses dois eventos.

Termino o filme profunda e inexplicavelmente mexido.

Na primeira parte do filme, narrado do ponto de vista de Mugino Saori, a mãe de Minato, somos levados a acreditar que Minato está sofrendo nas mãos de um professor, Hori Michitoshi, que aparentemente o agrediu fisicamente e disse coisas terríveis para ele… e é muito difícil vir escrever a respeito disso depois de ter visto o filme, porque o segundo ato de “Monster” desconstrói por completo essa narrativa, conforme percebemos que Hori não é, de modo algum, o “monstro” que imaginamos que ele fosse. Enquanto assistimos à primeira parte, no entanto, com as informações que temos ao lado de Saori, acreditamos na maldade do professor e nos desesperamos esperando respostas e, mais do que isso: esperando ações da escola contra Hori Michitoshi.

A primeira parte de “Monster” transmite uma sensação de angústia e de dúvida. O filme suscita questões a respeito da aparente negligência da escola frente aos crimes cometidos por um membro do corpo docente, e as dificuldades enfrentadas por Saori, tentando encontrar a verdade do que está acontecendo ao seu filho para saber o que ela pode fazer a respeito… a sensação latente de impotência quase nos sufoca, e o filme nos coloca no lugar daquela mãe, juntando detalhes em busca de sentido: o cabelo cortado de Minato; o isqueiro encontrado na sua cama; o tênis faltando e que ela encontra na casa de Hoshikawa Yori ao visitá-lo; a informação de que o filho pode estar fazendo bullying com um colega; as marcas de queimadura no corpo de Yori…

Quando a narrativa passa a ser da perspectiva de Hori, no entanto, embora inicialmente talvez o olhemos com um ar de desconfiança por causa do sentimento construído pelo filme até ali, descobrimos que ele é um bom homem, no fim das contas… professor dedicado, gentil e atencioso, o ponto de vista de Hori nos apresenta à relação de Mugino Minato e Hoshikawa Yori, e talvez sejamos levados a acreditar que Yori sofria bullying de Minato – vemos Hiro encontrar Minato em um episódio destrutivo dentro da sala de aula; o vemos encontrar Yori caído no chão quando está chegando no colégio; Hiro vê Minato saindo do banheiro dos meninos pouco antes de encontrar Yori preso em uma das cabines… todas cenas que, naquele momento, parecem indicar bullying.

A segunda parte do filme nos causa sensações conflituosas… é muito difícil pensar que nós mesmos acabamos de julgar Hiro e, no entanto, descobrimos que ele não é uma pessoa ruim. Vemos um pouco da realidade rigorosa do sistema educacional japonês quando a escola tenta esconder de Saori a verdade sobre Minato, porque ele pode não conseguir entrar em outra escola se for denunciado por bullying (!), mas vemos também o descaso com o trabalhador, a quem é imputado um crime que ele é praticamente forçado a confessar, sem que ninguém se importe com o fato de a sua vida ser arruinada por causa de uma mentira. Com as matérias no jornal e o julgamento público, Hiro perde a namorada, o prestígio e, possivelmente, qualquer chance de conseguir outro emprego como professor.

E, curiosamente, tudo isso acontece a ele por ele se importar… por ele ser um professor bacana que tenta se aproximar de Minato e de Yori, que os coloca para fazer as pazes depois de uma briga na sala de aula, por exemplo, mas também um professor que não entende toda a complexidade do que está acontecendo. Em um primeiro momento, eu acho que Hori de fato acredita que Yori está sofrendo bullying de Minato, e ele só “desvenda” a verdade muito mais tarde, quando tudo já explodiu e a vida dele já está destroçada, mas ele encontra uma tarefa de casa que foi entregue por Yori e no qual consta os nomes dele e de Minato… ali, ele “entende tudo” e, ainda que não seja sua obrigação profissional mais, ele é humano o suficiente para seguir se importando.

Então, ele busca Minato para dizer a ele que ele não é estranho.

E, aí, o filme retorna uma segunda vez.

No seu último ato, todas as peças se encaixam – e é lindo ver as coisas fazendo sentido. Ver as cenas que vimos a partir de Saori ou a partir de Hori fazerem sentido porque, finalmente, estamos no ponto de vista “mais completo”: dos próprios Mugino Minato e Hoshikawa Yori, conforme eles descobrem qual é a natureza de sua relação. O terceiro ato do filme pode ser doloroso, selvagem, brutal… mas também sabe ser sensível, emocionante e humano. Uma construção rica de uma amizade, inicialmente, e de um romance, que causa sofrimento e angústia não por causa de Minato e Yori: eles estão bem e felizes quando eles estão juntos, quando podem “se esconder” num lugar que é apenas deles; mas, do lado de fora, eles enfrentam a pressão de uma sociedade preconceituosa.

E cada um “lida” com isso de uma maneira.

Minato e Yori são crianças que jamais deveriam conhecer o peso e a dor causada por um preconceito tão enraizado nas entranhas da sociedade. Os momentos que eles compartilham sozinhos em um vagão de trem abandonado, que se torna o refúgio com a carinha deles, porque eles o transformam nisso, são os momentos mais lindos e curiosamente melancólicos do filme – porque sabemos que aquela é uma realidade que eles construíram e que eles não encontram do lado de fora. Uma paz e uma segurança que eles não encontram quando o pai de Hoshikawa Yori fala que “ele está doente” ou quando os colegas de classe debocham dele, o agridem, o trancam no banheiro, colocam lixo na sua mesa, estragam suas coisas… e isso é doloroso de se assistir.

Hoshiwaka Yori se faz de forte, quando na verdade ele não é – é apenas uma proteção que ele criou para si mesmo, um sorriso contagiante que ele coloca no rosto para que ninguém veja como dói do lado de dentro. Mas ele tem consciência de quem é, do que sente, embora o seja impedido de expressar. Mugino Minato, por outro lado, encontra na sua relação com Yori a novidade, e ele não sabe lidar com isso. É mais fácil quando ele está sozinho com Yori e ele não precisa se preocupar com nenhum olhar, nenhum comentário, mas ele não sabe como agir quando ele também é atormentado na escola… ele se fecha, ele se torna explosivo, ele tenta encontrar alternativas para apoiar o Yori mesmo que “de longe” quando ele não quer se envolver de verdade.

A cena do Minato cortando o cabelo me dói profundamente!

Algumas das cenas mais impactantes do filme vêm justamente da relação de Minato e Yori, e da intensidade vinda da sinceridade com que eles gostam um do outro e se importam um com o outro… como quando Minato vai até o vagão abandonado durante a noite, troca mensagens com Yori e, então, se prepara para encontrá-lo, mas a mãe o encontra antes e, quando ele vê uma ligação de Yori, ele pula do carro para poder falar com ele – ou quando ele admite para Yori que ele não quer que ele vá embora, mas o pai de Yori o está mandando para “morar com a avó”, para que “ele se cure de sua doença”. A homossexualidade sendo tratada como uma doença é algo que traria consequências horríveis para o psicológico e para a vida de Hoshiwaka Yori, e é muito triste!

E quantas pessoas agem como o pai de Yori na vida real?

Quantas vidas são destruídas por causa de pessoas como o pai de Yori?

Em uma das cenas mais fortes de “Monster”, Minato bate à porta de Yori desesperadamente, porque precisa falar com ele, e o pai de Yori o obriga a dizer, com um sorriso fingido no rosto, que ele “se curou” e que “ele gosta de uma menina que mora perto da casa da avó”. Quando Minato está indo embora, no entanto, Yori abre a porta para soltar um “Desculpe. Eu menti”, sabendo que o pai vai bater nele por ele ter dito isso, mas não querendo que o Minato fosse embora acreditando em sua mentira… um paralelo perfeito à surpreendente conversa de Minato com a diretora da escola, quando ele diz que “está gostando de alguém, mas não pode contar para ninguém, ou então ele nunca será feliz”. O tamanho da dor que o texto desse filme consegue transmitir!

Toda a sequência final é bela de uma forma curiosa e não-tradicional. Tem um toque dramático de melancolia, mas uma força igualmente impactante. Durante um tufão, Minato corre até a casa de Yori e o encontra quase morto dentro da banheira, de onde ele o ajuda sair e o leva para o lugar que eles sempre compartilharam: o lugar onde eles mais foram felizes na vida… onde só existia eles e nada mais importava. Propositalmente ambíguo, o filme não é taxativo em relação ao final: quando Hori procurou Minato para dizer que “tinha entendido tudo” e ele e Saori saíram procurando pelos garotos, eles tiveram tempo de encontrá-los com vida e salvá-los, ou já era tarde demais e eles já tinham sido sufocados pelo preconceito que causou tanto sofrimento até ali?

Não sei. Sinceramente, eu não sei. Eu sinto que o filme dá a entender que, quando os meninos saem do subsolo para um dia excessivamente ensolarado, eles estão em outro plano no qual eles finalmente encontraram a liberdade, no qual eles correm e sorriem juntos, sem que ninguém os julgue ou os silencie. Por outro lado, talvez eles ainda estejam vivos, e o sol depois de uma tempestade é mesmo mais forte, e é uma maneira de representar a força que eles encontraram juntos. “Monster” é um daqueles filmes que, quando os créditos começam, te convidam a pensar, a avaliar, a discutir… eu fiquei algum tempo em silêncio, tentando processar tudo, tentando chegar a uma conclusão, tentando entender se, de fato, é isso o que importa ao fim do filme.

E não é. O que menos importa, ironicamente, é se Minato e Yori estão vivos ou não. O que “Monster” instiga é a reflexão a respeito do silenciamento de identidades, algo que, como comunidade LGBTQIA+, nós infelizmente vivemos constantemente. Fortíssima a simbologia de se sentir um “monstro” quando você não se encaixa dentro de padrões que são esperados de você, e o filme nos convida a ver quem, ou o que, de fato, é o monstro… “Monster” é, sem sombra de dúvidas, uma das melhores experiências cinematográficas que eu tive na vida. A competência técnica do filme alinhada perfeitamente a um roteiro inteligente, sensível e necessário, com representatividade e discussões pertinentes. Um daqueles filmes para ver e pensar: “Eu nunca mais serei o mesmo depois de assistir a isso”.

Filmaço!

 

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