Plainclothes (2025)
“It’s not
dad’s letter. It’s mine”
É sempre bom
lembrar o quanto o cinema pode marcar as nossas vidas. De tempos em tempos,
tenho o prazer de chegar a um filme que me dá a sensação de que eu fui marcado para sempre. Nesse
momento, me sinto assim… ainda atordoado e com muito em que pensar. Sempre falo
sobre como é importante termos pessoas LGBTQIA+ contando histórias LGBTQIA+, e
o impacto na obra final quando isso acontece pode ser de fato sentido. “Plainclothes” é a estreia de Carmen Emmi, responsável pelo roteiro
e pela direção do filme, no cinema, e conversa diretamente com a comunidade em
vários níveis: na representação de nossa história enquanto comunidade, sim, mas
também na intensidade dos sentimentos, sejam eles bons ou não… o amor, o
desejo, a vergonha, o medo, a angústia, a ânsia por liberdade.
“Plainclothes” é intenso como sua
sinopse exige. O filme, protagonizado por Tom Blyth e Russell Tovey e que teve
sua estreia no Festival de Cinema de Sundance no início do ano, conta a história
de um policial gay que trabalha à paisana em uma operação em um shopping,
atraindo homens gays para o banheiro e entregando-os para que sejam presos, e
ele lida com conflitos internos e externos que são acentuados no momento em que
ele se envolve com um dos homens que o seguem banheiro adentro. A narrativa,
que te conduz por dezenas de sensações distintas, é tão ampla quanto o seu
protagonista, Lucas… um homem marcado por dúvidas e certezas, por medos e
vontades, por repressões e por coragem. Um homem lidando com mais do que ele
pode.
O trabalho
de Lucas em si é uma faceta interessantíssima do filme. Não é, em momento
algum, o intuito de “Plainclothes”
centrar-se nessas operações como centro da narrativa, porque ele é um filme
muito mais intimista que vai do micro
para o macro. A vitória do roteiro está em nos convidar a acompanhar a
trajetória de Lucas, a perceber como seu trabalho entra em colapso com a sua
identidade, e como o juramento que ele foi obrigado a fazer vai contra as
coisas em que ele realmente acredita. A maneira como o filme representa isso
visualmente nos deixa propositalmente incomodados,
nos deixa com uma sensação de sufocamento que emula o que o próprio Lucas está
sentindo… os discursos ao seu redor, o que ele sente ao ver os vídeos, os
“fantasmas” dos homens que ele ajudou a prender…
Com Andrew,
por algum motivo, as coisas parecem diferentes. Quando ele o atrai para o
banheiro, a parte dele que o deseja fala mais alto do que a “obrigação” de
fazer com que ele caia em uma armadilha, e o conflito nele é um paradoxo
curiosamente interessante de se acompanhar. O filme é excelente na construção
da expectativa e na angústia da sensação de que algo vai dar terrivelmente
errado a qualquer momento. Lucas é mais ele mesmo do que nunca no momento em
que ele olha para Andrew naquele banheiro, pede que ele não diga nada e acena
levemente o autorizando a abrir o zíper da sua blusa, mas quando o zíper
emperra, ele é “relembrado” do porquê de estar ali, e então ele sai do banheiro
com a cabeça a mil… e não entrega Andrew.
A partir
daquele momento, nada mais é o mesmo para Lucas… o que ele descobrira a seu
respeito tinha ganhado uma comprovação concreta enfim, e ele não pode voltar
atrás. Ele telefona para Andrew no número que Andrew consegue entregar para ele
na saída do banheiro, e eles marcam um encontro em um cinema que acaba os
levando até um local quase secreto no qual eles
conversam pela primeira vez… não é fácil notar que Lucas – ou “Gus”, como
ele se apresenta, usando o nome do pai que faleceu recentemente – nunca fez
aquilo antes, e Andrew lhe diz que eles
não precisam fazer nada se ele não quiser, e eu gosto de como a resposta de
Lucas/Gus parece ser uma resposta do próprio corpo frente à possibilidade de não fazer o que ele quer tanto fazer…
Então, ele o
beija, eles derrubam coisas e precisam sair
correndo.
O filme faz
um excelente trabalho na construção e na representação do desejo – da
expectativa à consumação. Temos três momentos particularmente notáveis,
sensuais e excitantes: o primeiro no próprio teatro, quando Andrew pede
permissão para tocar em Lucas e coloca as mãos em sua cintura; o segundo na
estufa, quando eles se beijam de verdade pela primeira vez, e há urgência,
força e beleza em cada encontro dos lábios, e Andrew conduz a mão de Lucas
antes de ajoelhar-se e satisfazê-lo, até que eles sejam interrompidos; por fim,
no carro de Andrew, quando eles transam pela primeira vez, ambos versáteis, em
uma cena que é intensa, excitante e eroticamente poética, com toda a descoberta
de Lucas de novas sensações e novas possibilidades de prazer.
Então,
Andrew se despede: como já avisara antes,
eles não podem se encontrar muitas vezes.
Lucas não
consegue aceitar essa “despedida”, ele quer ir com Andrew para São Francisco,
literal ou figurativamente, mas note: não é realmente uma questão de Lucas ter se apaixonado, tampouco é uma questão de
ele ficar obcecado… é mais uma
tentativa desesperada de se agarrar a algo que ele sentiu que era real, talvez pela primeira vez em sua vida. Lucas
terminou um relacionamento, perdeu o pai recentemente, sente que o seu trabalho
o nega e o consome, e com Andrew foi quando ele se sentiu livre, ironicamente, pela primeira vez. Foi quando ele sentiu que
estava feliz, e ele não quer abrir
mão disso. Alguns encontros não são o suficiente, e é por isso que ele o
procura… é por isso que, com a placa do seu carro, ele o localiza e vai até
ele.
Eu sabia que
teríamos alguma reviravolta ali, mas eu não fiquei tentando adivinhar até o
momento. Sabia que existia algum motivo para Andrew ser tão “rigoroso” com a
ideia de não poder se encontrar várias vezes com a mesma pessoa, e sabia que
ele não estava sendo inteiramente sincero, assim como Lucas não estava sendo. E
então Lucas descobre que Andrew é um reverendo, além de marido e pai. Toda a
sequência da igreja é de uma sensibilidade e de uma realidade imensa. Aquele é o momento em que vemos o Lucas sem
qualquer máscara, sem qualquer armadura para protegê-lo, mas repleto de medo…
medo de ficar sozinho, medo de não ser feliz… ele está ali, implorando para que
Andrew o aceite, enquanto Andrew implora para que ele vá embora.
Aqui, muita
coisa fica clara. Aqui, entendemos a construção e o objetivo de ambos os
personagens e por que são eles que
conduzem a história de “Plainclothes”.
Eles são duas representações distintas de um “mesmo” indivíduo. De um lado, temos
o Andrew: um homem casado, com filhos, reverendo da igreja na qual o seu pai
fora reverendo antes dele, e que está bem com alguns encontros casuais
ocasionalmente com homens, mesmo que ele tenha que viver a vida interpretando e
fingindo ser quem não é; de outro, temos o Lucas, alguém que está disposto a
viver plenamente ao invés de contentar-se a interpretar um papel… ele não está
disposto a viver uma vida inteira sentindo-se infeliz e mentindo para si mesmo
e para as pessoas ao seu redor.
De um lado, alguém
que decidiu que já é tarde demais.
De outro,
alguém que ainda tem tempo de fazer
diferente.
A construção
desse Lucas que “entendemos” no final do filme está presente em toda a obra. As
cenas com a sua ex-namorada são particularmente importantes, a meu ver, porque
ela é a primeira pessoa a quem ele diz a verdade – a primeira pessoa pra quem
ele conta que gosta de homens e pra quem ele conta que “conheceu alguém”. E a primeira pessoa que lhe diz que não há
nada de errado nisso. Eu não acho que Em tenha contado para alguém o
“segredo” de Lucas, mas a angústia e o medo de isso “se espalhar” está colocado
no filme de uma forma que todos nós, que já estivemos na pele de Lucas,
entendemos completamente… e dói. A maneira como percebemos e tememos cada
olhar, cada comentário, como nos sentimos sufocados, com medo, sozinhos…
O filme tem
uma direção FASCINANTE em todos os momentos. Ambientado no fim dos anos 1990, o
filme tem uma estética que nos remete à época, com o formato de tela 4:3, por
exemplo, além de pequenos flashes com uma característica mais caseira que parece trazer ainda mais
verdade para as histórias contadas/representadas ali. E a atuação de Tom Blyth,
que conduz o filme como Lucas, é facilmente um dos pontos altos de “Plainclothes”, porque ele não apenas
deixa claro o que o personagem está sentindo, mas ele faz com que sintamos o
mesmo. Nem sempre o filme precisa de falas
para transmitir o que deseja, porque muita coisa está no olhar, na postura, na
respiração… o quase suspiro que encerra o filme após a última fala, por exemplo, diz mais que qualquer texto!
A sequência
final é arrebatadora e surpreendente. Andrew escreve uma carta e a endereça a
“Gus”, e quando ela é encontrada pelo tio de Lucas, ele presume que seja uma
carta escrita para o seu falecido pai… o discurso homofóbico de Paul é a gota
d’água que faz com que Lucas não apenas exploda, mas mude a sua vida por
completo: há tanta verdade naquele grito, naquela briga e naquela revelação. Na
carta, Andrew fala sobre como é tarde demais para ele, mas não é tarde demais
para Lucas, e ele “ainda pode encontrar sua São Francisco”, e ouvimos a carta
na voz de Andrew enquanto Lucas coloca para fora anos de frustração em uma
briga com o tio preconceituoso, e então olha para a mãe, na frente de todos e diz
que a carta não era para o pai… era para ele.
O poder
dessa última cena torna o filme muito maior para mim, e ele termina no momento certo. A vida de Lucas
continua, e continua com possibilidades lindas, mas a história de “Plainclothes” se encerra ali porque era
sobre coragem, e ele finalmente a
encontrou… ele faz o que Andrew nunca teve coragem de fazer. Ao revelar à mãe,
na frente de toda a família na celebração de Ano Novo, que a carta de Andrew
era para ele e não para o pai, ele está revelando que é gay e está
implicitamente dizendo que não vai mais esconder isso. A expressão da mãe tem
mudanças sutis do entendimento ao acolhimento, mas tampouco é isso o que
importa: o que importa é a expressão de Lucas, e o que aquilo significa para
ELE… a maneira como a expressão é uma antes de falar e outra depois… o suspiro
que é de alívio.
Eu entendo
porque eu já estive ali. E Tom Blyth entrega toda essa emoção magistralmente.
QUE FILME!
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