Pássaro Branco: Uma história de Extraordinário (White Bird: A Wonder Story, 2024)

“Vive l’humanité!”

Baseado na obra de R. J. Palacio e dirigido por Marc Forster, “Pássaro Branco” é um emocionante filme de 2024 que conta a história de Sara Blum, uma garota judia que vivia na suposta “Zona Livre” da França durante a Segunda Guerra Mundial e que viu sua vida posta em perigo com a invasão dos nazistas… Sara é obrigada a deixar o seu mundinho cor-de-rosa para trás e parar de fingir que o que está acontecendo “não tem nada a ver com ela” quando soldados aparecem na escola para levar todas as crianças judias e ela recebe a inesperada ajuda de um colega de classe a quem ela nunca tratou bem de verdade, mas que demonstra gentileza e humanidade – características corajosas, especialmente em um cenário no qual elas podem lhe custar a vida.

A trama compartilha o universo com “Extraordinário”, o livro de R. J. Palacio que conquistou o mundo há alguns anos… naquela história, Auggie teve a sua vida atormentada por Julian, um colega de classe cuja avó tem uma história para compartilhar agora – uma história com uma lição bastante clara. “Pássaro Branco” fala sobre o ódio gratuito, sobre o preconceito, sobre onde está a força quando tu do parece perdido… é uma história dolorosamente real, porque o que foi representado pelos nazistas na época da Segunda Guerra Mundial está, infelizmente, muito mais presente ainda hoje do que gostaríamos que estivesse, e é em parte por isso que Grandmère Sara conta sua história ao neto e expõe sua arte: porque precisamos lembrar para que não aconteça novamente.

Julian foi expulso da escola na qual estudara com Auggie, e agora ele tem a chance de recomeçar em uma nova escola… a pergunta é: quem ele será nessa nova escola? É mais cômodo se esconder e deixar que as coisas aconteçam como sempre aconteceram, talvez, mas ele é capaz de ter a mesma coragem de demonstrar gentileza quanto aquele cujo nome herdou? Sara sente que Julian precisa ouvir a sua história, porque conversa com a dele de alguma maneira (!), ainda que lhe doa falar sobre isso – ainda que lhe doa recordar a maneira como ela foi arrancada de sua vida, como viveu escondida em um celeiro, como sua mãe morreu em Auschwitz e como ela perdeu alguém extremamente importante para ela para a intolerância.

Com a narração da Grandmère, somos levados de volta à França de 1942, onde Sara vivia uma vida razoavelmente tranquila com os pais e tentava acreditar que os horrores da guerra e o preconceito contra judeus jamais chegaria até eles, porque eles eram cidadãos franceses, não eram religiosos e viviam na Zona Livre. Quando os sinais se tornam visíveis demais, talvez já seja tarde para se fazer algo… uma placa na padaria que diz que “eles não atendem judeus”, um comentário de um colega de classe sobre seu caderno de desenho e como “ela é boa para uma judia” e, enfim, a batida na escola que culmina na prisão de todas as crianças judias e o assassinato daquele que tentou ajudá-las a escapar… não dá mais para fingir que nada está acontecendo.

Isso é, talvez, o que mais me marca em “Pássaro Branco”: a maneira como a história nos prova que ficar inertes porque “não é com a gente” só nos faz cúmplices até o momento em que nos tornamos vítimas. Quando Sara consegue escapar da perseguição na floresta, ela recebe a ajuda de um colega, um garoto cujo pai trabalha nos esgotos e, portanto, sabe um caminho por onde ela pode fugir… um garoto que demonstra a ela uma generosidade que ela nunca demonstrou a ele. Tudo bem, Sara nunca foi a protagonista dos ataques que Julien sofreu de seus colegas, mas ela assistiu silenciosamente enquanto debochavam dele ou riu de piadas sobre seu cheiro porque o pai trabalhava nos esgotos. E mesmo estudando com ele há cinco anos, ela nunca soube seu nome…

Julien.

A ajuda de Julien e dos pais dele a tornam parte da família. Com os Beaumier, ela se mantém segura durante todos os longos meses que passa escondida no celeiro cheio de morcegos próximo à casa da família – o celeiro que se torna todo o seu mundo, do qual Julien é o centro. Com todo o horror que está acontecendo do lado de fora e que ocasionalmente escapa para o lado de dentro, como quando Julien é espancado por Vincent, os dois criam ali dentro um pequeno universo extraordinário, que dura algumas horas do dia. Normalmente sozinha, o mundo de Sara se ilumina com a presença de Julien, com quem ela compartilha jogos de cartas, risadas e passeios de carro que acontecem apenas na imaginação deles, mas que acalentam aqueles dias.

Gosto da relação que se estabelece entre Sara e Julien, e de como se torna um carinho sincero. Inicialmente, eles precisam quebrar a barreira do fato de eles nunca terem sido amigos, e Sara chega a se questionar por que Julien a trata bem se ela nunca fez o mesmo, mas aos poucos isso vai ficando de lado… até não ficar mais. Quando Vincent segue Julien depois de vê-lo sair com algo da sala do diretor, Sara assiste enquanto o garoto é espancado no celeiro, que já não parece mais tão seguro quanto antes – e, ainda assim, ela não pode sair do seu esconderijo, embora pense em fazê-lo… fazer isso significava a sua morte, a morte de Julien e dos Beaumier que a acolheram e a esconderam. Isso tudo é muito maior do que Sara, e talvez só então ela se dê conta disso.

O tempo passa enquanto Sara precisa aprender a viver sozinha com as visitas diárias de Julien, que eventualmente volta a visitá-la, seu caderno de desenho e um pássaro branco que a faz pensar na mãe. Acho profundamente emocionante a cena da “festa de aniversário” de Sara: ela não tinha nem se lembrado da data (como poderia?), mas os Beaumier se lembram e encontram uma maneira de irem juntos ao celeiro, com um rádio e um bolo de chocolate de verdade, feito depois de meses de economia. E, como um presente de aniversário extra, eles recebem uma notícia importante sobre a Guerra e vislumbram, pela primeira vez em anos, a possibilidade de a guerra chegar ao fim e, com isso, eles voltarem para as suas vidas como elas eram.

É essa esperança sem data que talvez os deixe descuidados… Julien volta para o celeiro depois da meia-noite para convidar Sara para um passeio noturno, para que ela possa ver o florescer das flores que ela tanto ama, e os dois compartilham momentos tão bonitos e tão eternos naquela noite fugaz que, para mim, é repleta de melancolia – ter lido a HQ e saber o que estava por vir não nos prepara para a dor que é ouvir a declaração de Julien na forma de uma pergunta que ele nem precisa saber, porque Sara sabe a resposta e a resposta é “sim”. Naquele instante, eles sonham com um futuro, sem ideia de que aquela é a última vez que eles vão se ver… na manhã seguinte, Julien é capturado com alguns pacientes de um hospital para ser levado a um campo de concentração.

Um rapaz bom, inteligente, artístico… mas que os soldados nazistas consideram “descartável”.

O clímax do filme entrega todo o pesar que esse tipo de história antevê. Julien é capturado, e embora a mãe esteja com dinheiro para comprar a sua liberdade, ela não tem tempo de fazê-lo… primeiro porque os soldados nazistas negam qualquer prisão naquele dia, depois porque Julien é assassinado quando o grupo tenta escapar. Enquanto Julien enfrenta o seu destino, o caderno de Sara, um último presente que ela dera ao garoto, é encontrado por Vincent, e então ele entende tudo sobre Julien, Sara e o celeiro, e Sara precisa lutar pela própria vida, em uma sequência inusitada e improvável da qual ela sai com vida. É irônico descobrir que os vizinhos que os Beaumier pensavam ser informantes nazistas pensavam o mesmo a seu respeito e também escondiam pessoas…

Mas eles viviam em um lugar e tempo no qual atos de bondade precisavam ser “escondidos”.

“Pássaro Branco” é um convite a pensar. É uma história fictícia baseada em um período histórico real, no qual o ódio gratuito por tudo o que era diferente trouxe consequências e marcas que carregaremos para sempre. E, nesse momento, sentimos que esse tipo de história ainda precisa ser contado, porque a lembrança deve estar viva para que o horror não se repita. Estamos sob essa ameaça constante, estamos vendo a ascensão do ódio tomando proporções assustadoras, e sabemos quais são as possíveis consequências… dessa vez, precisamos ser resistência para que não se repita – precisamos perceber, como Sara não percebeu, que não podemos ficar em silêncio sendo cúmplices até o momento em que nos convertamos nas vítimas.

A empatia e a gentileza são atos de coragem que nos tornam humanos…

E precisamos praticá-los.

 

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