Homem com H (2025)

“Sou Homem com H, e como sou!”

Absolutamente fascinante, uma obra intensa, provocante e poética, exatamente como a história de Ney Matogrosso exige. Com roteiro e direção de Esmir Filho, baseado na biografia escrita por Julio Maria, e protagonizado por Jesuíta Barbosa, “Homem com H” foi exibido no 27º Festival de Cinema Brasileiro de Paris e teve a sua estreia mundial em maio de 2025, contando a história do grande cantor brasileiro Ney Matogrosso e encantando público e crítica enquanto obra, enquanto representatividade e enquanto retrato de uma figura tão icônica que, mais do que levantar bandeiras, sempre foi a própria bandeira. Ney Matogrosso é livre… nunca se deixou prender por convenções da sociedade, sempre sendo quem é e não quem queriam que ele fosse.

Essa faceta livre e confiante de Ney faz com que nos encantemos por ele desde a sua infância, em cenas nas quais as respostas a seu pai estão à altura da opressão e do preconceito que ele enfrenta dentro da própria casa desde sempre. O fascínio de Ney estampado em seus olhos no momento em que ele assiste a uma cantora, por exemplo, ou a força com que responde ao pai quando ele diz que “filho seu não vai ser artista, porque isso é coisa de puta e viado”, e Ney diz que “pedreiro também pode ser viado”. Ney cresceu não se deixando silenciar em uma casa na vila militar, criado por um pai que tinha servido na Segunda Guerra Mundial, e ele saiu de casa assim que pôde, dizendo ao pai que não era viado, mas “quando fosse, o Brasil inteiro ia ficar sabendo”.

Promessa feita e cumprida com êxito!

Doloroso e irônico como, ao sair de casa, Ney se alista e passa algum tempo na Aeronáutica, talvez como uma forma de “provar” ao pai que ele dava conta – ele se sobressai no território do inimigo, e possivelmente vive um romance com outro recruta, que rende cenas de uma tensão sexual palpável, bem como uma despedida dolorosa onde os caminhos se separam. O anseio por liberdade, que sempre parece ter definido Ney, também é o que define o seu primeiro relacionamento concreto com um homem: ele está ali pelo prazer, mas ele não está ali pelas amarras. Ele não deixou a casa do pai para ser preso por outro homem, ou para lidar com ciúmes e sentimento de posse. Então, ele arruma suas coisas e vai embora… uma busca constante pela liberdade.

O espírito de Ney combina perfeitamente com o teatro – e é aí que ele busca extravasar seu talento artístico inicialmente… ele se vê como um ator. E ainda que ele eventualmente tenda para a música, com sua voz fina se destacando, chamando a atenção e fazendo com que as pessoas tenham certeza de que ela precisa ser ouvida, sua alma de ator nunca o abandona. Acho que isso está presente em Ney para sempre: ele é performático, cada apresentação sobre o palco é uma experiência ampla que vai muito além de apenas música… é música, sim, mas é história, é entrega, é provocação. O que Ney Matogrosso faz quando está em frente a um microfone, com roupas idealizados por ele mesmo e maquiagem, é ARTE. Da que atinge, provoca, incomoda, fascina.

Um artista completo.

Musical e visualmente, o filme é um espetáculo. A maneira como Jesuíta Barbosa se entregou na interpretação de Ney Matogrosso é tão profissional e completa que ele captura essa essência, os movimentos, os olhares… seria assustador se não fosse perfeito. Gosto muito de toda a sequência de “Sangue Latino”, por exemplo, na qual Ney é “proibido” de olhar para a câmera, mas então é justamente isso o que ele faz, e, é claro, “Homem com H”, que foi uma cena que me deixou gritando “CINEMA!” quando chegou ao fim. A música que Ney não queria gravar e que acaba se tornando um dos seus maiores sucessos, apresentada em uma performance intensa e intercalada com a primeira vez de Ney com Marco de Maria. Uma cena provocante, excitante, bela e ousada.

Uma cena Ney.

O filme também retrata a relação de Ney com Cazuza, o jovem por quem ele se encantou, quiçá por quem se apaixonou, e cuja importância e influência mútua definiu caminhos. Gosto muito de como o Cazuza é trazido para a narrativa, e de como a sua conhecida história está ali para todos os fãs de sua carreira, ainda que não esteja (e não devesse mesmo estar) em primeiro plano. O filme explora as afinidades e tudo o que os aproximou, bem como o que os afastou sem que eles deixassem de se amar e se importar um com o outro até o fim da vida de Cazuza… é Ney Matogrosso o responsável pelo último show de sua carreira, e é muito forte a cena em que Cazuza canta “O Tempo Não Para” para o Ney ouvir e Ney diz que ele deve encerrar o show com essa música.

Que grande apresentação!

A participação de Cazuza na vida de Ney coincide com a época em que o terror do vírus HIV chega ao seu ápice, e essa é uma angústia ainda presente por tantas vidas que foram ceifadas prematuramente. Durante anos, Ney e tantas pessoas conviveram com a morte ao lado, e uma cena que retrata isso muito bem é quando Ney é despertado pelo telefonema que anuncia a morte de um amigo e seu namorado, acordando ao lado, pergunta “quem foi dessa vez”. Durante algum tempo, Ney vive um romance com Marco de Maria, talvez o grande amor da sua vida, e ele permanece ao seu lado até a sua morte em 1993, levado pelo vírus. Fortíssima toda a sequência de Ney vendo a pessoa que ele ama morrer aos poucos ao seu lado sem que ele possa fazer nada a não ser estar presente.

Também temos algum tipo de “reconciliação” de pai e filho, que inicialmente eu não achei que poderia acontecer. Ney passou por coisas terríveis nas mãos do pai desde a sua infância, porque ele nunca o aceitou como ele era, mas eles encontram o caminho de volta um ao outro antes da morte do pai, à sua maneira. Vemos o pai se emocionar enquanto assiste a um show de Ney e ficamos sabendo que ele escutou secretamente a um disco do filho, chegando a dizer que “Ney era um grande artista”. Quando ele visita o pai para se despedir, ele não quer que eles fiquem remoendo o passado… ele só quer mostrar que ele está ali, apesar de tudo. Não é simples, mas funciona para eles, e fico muito contente por funcionar. Por Ney não precisar carregar isso até hoje.

“Homem com H” é um espetáculo, e não podia ser diferente. Ney Matogrosso é alguém que ousou ser ele mesmo quando tudo o que era diferente era silenciado e desencorajado. Ney nunca deixou que outras pessoas ditassem quem ele era, o que ele gostava e o que ele podia ou não podia fazer… Ney nasceu para ser livre, e segue sendo livre até hoje. Admirado e respeitado por toda uma geração que reconhece a sua grandiosidade e a sua importância para a história da música brasileira e da comunidade LGBTQIA+. Como um homem gay, assistir a “Homem com H” foi uma experiência ainda mais marcante. Com uma sensibilidade e uma intensidade, por mais paradoxal que seja, o filme chega à sua audiência como Ney sempre chegou: quebrando barreiras.

Lindíssimo!

 

Para reviews de outros FILMES, clique aqui.

 

Comentários

  1. Muito bom! Vi na Netflix, mas queria muito ter visto no cinema. E agora quero ver uma performance do Ney Matogrosso ao vivo.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Infelizmente, eu também só vi na Netflix... teria sido incrível ver no cinema!

      Excluir

Postar um comentário