Anos Rebeldes – O fim dos “Anos Inocentes”: A prisão de Damasceno

“Numa hora dessas, é até falta de caráter não tomar uma posição, Lúcia!”

Quando João Alfredo apareceu na casa dos Damasceno para convidar Orlando para ser orador em um evento em um teatro lotado depois da prisão de seus amigos justamente no dia do aniversário de Maria Lúcia, ela temeu que o pai fosse ser preso bem naquele dia… curiosamente, esse é um momento importantíssimo de virada para a personagem. Marcada pelo medo de fazer algo e conformada em manter-se à margem como se pudesse fingir que o quer que estivesse acontecendo com a política brasileira não lhe dizia respeito e que ela estaria “segura” enquanto agisse assim, Maria Lúcia é finalmente despertada para a necessidade de se fazer algo. É de muita coragem de seu pai, de João Alfredo e de tantas outras pessoas não baixarem a cabeça e aceitar o avanço da Ditadura Militar em silêncio.

João Alfredo aparece na casa de Maria Lúcia no fim daquele dia, após a assembleia, e ele está ali para contar para ela que tudo correu bem. Isso não quer dizer que ela esteja tranquila, e aqui ela e João compartilham uma das suas cenas mais intensas e mais interessantes de “Anos Rebeldes”. Maria Lúcia está furiosa com João por ter tirado o pai da comemoração do seu aniversário para falar naquela assembleia, e os dois discutem de maneira acalorada, e muitas verdades são ditas… João Alfredo é corajoso ao chamar Maria Lúcia de conformista, mesquinha e covarde, e ao dizer que é “até falta de caráter não tomar uma posição” com tudo o que está acontecendo, e quando ela se defende dizendo que “tem medo”, João Alfredo diz que é justamente para acabar com esse medo que eles lutam…

O texto da cena é excelente, a tensão crescente, e na intensidade daquela discussão o calor e a paixão que existe entre os personagens se tornam mais palpáveis, porque o romance deles, mesmo em crise, é latente. E na intensidade dessa discussão (vide que a discussão não é necessariamente sobre eles, nem porque não concordam de fato, mas porque agem de maneiras diferentes frente ao problema), eles acabam se beijando, transando e tudo culmina na Maria Lúcia reconhecendo que o pai e o João têm razão… dizendo-se envergonhada, ela pede que o João nunca mais a deixe ser covarde, porque ela devia ter ido com ele para aquela assembleia, e é isso o que ela quer fazer de agora em diante. Ela entende que não dá para ficar calado…

Mais tarde, naquela mesma noite, chega a notícia da prisão de Damasceno: os policiais que estavam disfarçados na assembleia realizada no teatro o seguiram e o prenderam, e Damasceno está preso sem direito a habeas-corpus e com apenas o seu advogado podendo vê-lo. Em toda essa confusão, João Alfredo se faz presente constantemente, até que Edgar lhe diga que ele não precisa estar ali o tempo todo, “afinal quem namora a Lúcia é ele”, e então Maria Lúcia tem coragem para dizer a verdade para Edgar e terminar com ele… ela gosta demais dele e o ama como ama seu pai e sua mãe, por isso quer que ele continue na sua vida e eles sejam amigos, mas ela ama o João Alfredo e não pode negar isso. Durante a maior parte da cena, Edgar permanece em silêncio…

Eventualmente, no entanto, ele fala. Em algum momento, ele diz que entendeu tudo, mas que isso é um absurdo porque não tem chance nenhuma de ela dar certo com João Alfredo, mas Maria Lúcia pede que ele a deixe “sonhar”. Depois, Edgar também tem uma briga séria com João aos gritos, e ele diz a mesma coisa: que o romance deles não vai durar um mês com o quanto eles são diferentes, mas João Alfredo fala sobre o direito que eles têm de tentar. A cena é conduzida com sensibilidade e beleza, partindo dessa briga de dois homens que se apaixonaram pela mesma mulher e culminando na memória de que eles são amigos há muito tempo e se amam a ponto de não quererem se perder um do outro. É, talvez, a minha cena favorita de “Anos Rebeldes” até o momento.

A virada acontece com um álbum que João Alfredo encontra nas coisas que Edgar tem sobre a mesa: um álbum que eles montaram juntos ao longo dos anos, com notícias que envolvem a corrida espacial… matérias sobre Laika, o primeiro ser vivo a ir para o espaço, ou sobre Yuri Gagarin, o primeiro humano a fazer o mesmo. Lembrando do fascínio deles pelo tema e da amizade ao construir o álbum, os dois riem, se emocionam e perguntam por que eles pararam de alimentar esse álbum se em breve o homem certamente estará pisando na lua… João fala sobre como lhe doeu, também, quando ele e Maria Lúcia começaram a namorar, mas ele seguiu sendo seu amigo, porque o queria na sua vida, e pede que ele faça o mesmo. Com os olhos cheios de lágrimas, Edgar já concorda com ele…

E então eles se abraçam. Um abraço forte, apertado, longo… e sincero.

QUE CENA MARAVILHOSA!

A minissérie é dividida em três “capítulos”: primeiro, os “Anos Inocentes”, que chegam ao fim agora com a saída de Damasceno, muito mais fraco do que antes e com a saúde debilitada; iniciam-se, assim, os chamados “Anos Rebeldes”, que trazem tanto a intensificação da luta contra a Ditadura quanto o aumento da violência que tenta silenciar cada voz não complacente; estamos, aqui, em um momento de transição, em que o avanço da Ditadura Militar e a tensão crescente são uma prévia do que está por vir com os chamados “Anos de Chumbo”, que se iniciam com o AI-5, em dezembro de 1968. Incrível como “Anos Rebeldes” é uma minissérie bem construída, politizada e NECESSÁRIA… a história precisa ser lembrada. Talvez agora mais do que nunca.

 

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