Parasita (Gisaengchung, 2019)



“Até algum dia”
UM FILMAÇO IMPRESSIONANTE! Eu fiquei tão feliz na última celebração do Oscar, quando “Parasita”, um filme sul-coreano, ganhou o prêmio de “Melhor Filme”, que eu nem sei como explicar… graças a isso, o filme está disponível para quem quiser assistir pelos cinemas do país agora (vergonhoso que a maioria dos cinemas o tenham ignorado até então though), e o que eu tenho a dizer é: VÃO. O filme mereceu cada prêmio e cada elogio recebido. É o retrato inteligente e cruel da diferença de classes, e o mais interessante (e desesperador) é que, embora se passe na Coréia do Sul, o filme trata de um tema universal. O filme caminha por gêneros, indo de algo razoavelmente leve e divertido a algo cada vez mais sério, denso e cru, chegando a um final surpreendente e assustador sem romantização, que é a representação escrachada da sociedade em que vivemos.
Sem filtros. Só a verdade.
O filme começa nos apresentando a família Kim, uma família que mora num bairro pobre da Coréia do Sul, trabalhando como podem em qualquer trabalho que lhes deem, como dobrando caixas de pizza – e uma cena forte e marcante, já nesse início, é aquele momento da dedetização, quando eles se perguntam se devem fechar a janela, e Ki-taek manda deixá-la aberta, porque “é dedetização de graça”. Enquanto eles estão lá dentro, tossindo. As coisas só começam a mudar para a família depois de eles receberem um simbólico presente, uma pedra que, segundo diz a lenda, “traz fortuna para a casa”. E, realmente, logo em seguida Ki-woo, o filho mais novo da família, recebe uma oportunidade: seu amigo está indo embora e pede que ele assume seu lugar como professor de inglês da filha de uma família bastante rica da região. E ele aceita.
Mesmo sem diploma…
Ele só “está imprimindo o diploma um pouco antes”.
A sequência de cenas seguintes é MARAVILHOSA. Irreverente e inteligente, a família aos poucos dá um jeito de se infiltrar por completo na casa dos ricos e ingênuos Park. Ki-woo (ou “Kevin”) é o primeiro, e já no seu primeiro dia ele vê a oportunidade de trazer a irmã, como professora de arte do filho mais novo da família, o Da-song. Ki-jung (ou “Jessica”), a irmã, é a minha favorita da família, porque ela é inteligente, e eu adoro como ela usa a ingenuidade da Sra. Park para garantir o emprego, mas não apenas como “professora de arte”, mas como “arte terapeuta” e, assim, ela pode cobrar mais (a maneira como ela muda como Ki-jung ou como Jessica é SENSACIONAL!)… e então percebemos qual é o jogo dos irmãos, que vão pouco a pouco galgando o seu lugar dentro da casa dos Park, e eu adorei como o filme mostrou isso, e como fez com que nos apaixonássemos por sua esperteza e, consequentemente, torcêssemos por eles…
Depois, é a vez do pai. Ki-taek é trazido para dentro da casa como motorista, quando Ki-jung deixa para trás uma calcinha no carro do antigo motorista e consegue que ele seja demitido, mas o mais legal é a maneira como eles trazem Chung-sook, a mãe, para dentro de casa – para assumir o lugar da governanta de confiança que já está ali desde antes de a família se mudar. Eles pensam em cada detalhe, e tudo se encaixa tão bem que chegamos a rir enquanto nos divertimos com todas as armações. Eles descobrem uma alergia a pêssegos da governanta, e conseguem mandá-la para uma consulta no hospital, onde Ki-taek tira uma selfie na qual ela “casualmente” aparece atrás dele. Depois, ele coloca um monte de coisa na cabeça da Sra. Park, sugerindo tuberculose, e, quando ela chega em casa, Ki-jung garante que ela estará tendo outro ataque de alergia…
Ki-taek até simula o sangue no guardanapo em que ela tosse.
É tudo milimetricamente pensado.
Então, estão todos dentro.
Dali em diante, o filme perde o seu tom introdutório mais leve. E que era leve sem deixar de ser sério, porque evidenciava todo o sofrimento da família que morava em uma casa abarrotada, pequena e suja, que não tinha oportunidade nenhuma, e que só queria ter um emprego e comida na mesa… até porque, quando entram na casa dos Park, vemos o quanto eles trabalham bem – não é por falta de competência. Quando os Park saem para acampar no aniversário de Da-song, os Kim se abancam da casa, e sabemos que qualquer um faria o mesmo na situação deles… inicialmente, eu achei que eles conquistariam a casa para eles ou qualquer coisa assim, mas não é a proposta do filme. Não é uma comédia, não é um romance… é a vida real. Naquela noite de chuva que passam na casa dos Park, eles sonham, e percebem o quanto eles são diferentes.
O quanto talvez “não pertençam” àquele mundo.
E, ali, tudo desanda…
Com a chegada da antiga governanta, que vem à casa pedindo para entrar porque “esqueceu algo no porão”, as coisas saem de controle e a roupagem do filme muda drasticamente. A vemos descontrolada, assustadora, e aqui começa um suspense alucinante que nos prende à poltrona e nos angustia… porque não sabemos que rumo a história vai tomar. Adorei toda a sequência do porão escondido, aquela descida que parecia eterna, enquanto ela chamava por alguém, e nós apreensivos sem saber o que veríamos no final, e então vemos o marido da governanta, morando escondido metros abaixo da casa dos Park, há muito tempo, para fugir dos cobradores. Ele está ali, e a esposa o traz comida de tempos em tempos… e é inteligentíssimo como o filme mostra essas diferenças. Elevando a casa dos Park, cheia de escadas, desde a sua entrada, e indo para baixo rumo à pobreza, rumo à miséria e às condições desumanas daquele homem no porão.
Chung-sook quer, mais que tudo, se livrar da ex-governanta, mas o jogo muda novamente quando o restante da família de Chung-sook aparece no porão e ela descobre que eles são todos parentes e estão enganando os Park. Assim, um está na mão do outro, agora, duas famílias em condições péssimas, dependendo da aprovação e das migalhas de uma família rica. A maneira como eles se voltam uns contra os outros, como a ex-governanta os ameaça com o “botão de enviar”, e como a casa vira um campo de batalha pelo celular, até que a Sra. Park ligue para Chung-sook, dizendo que “o acampamento não deu certo e eles estão voltando para casa”. Eles têm 8 MINUTOS para arrumar toda aquela bagunça até a chegada dos Park, para que eles não percebam nada… e são os 8 minutos mais eletrizantes e mais ANGUSTIANTES do filme até ali.
Mas o suspense só aumenta – os Kim trancam a ex-governanta e o marido no porão (Chung-sook a empurra escada abaixo, causando uma concussão), e se escondem na casa, e nada sai como o planejado… parece cada vez mais difícil sair daquela situação, fugir da casa sem serem vistos, e eles têm que permanecer escondidos, presenciando a vida dos Park, e é assombroso. É naquele momento que a visão dos Kim sobre os Park muda. Até ali, talvez eles fossem agradecidos: eles só queriam um emprego, a oportunidade de ter comida na mesa, mas quando o Sr. Park começa a conversar com a esposa sobre “o cheiro ruim de Ki-taek”, o cheiro que “todo mundo que anda de metrô tem” (e ela ainda comenta que “faz muito tempo que ela não anda de metrô”), Ki-taek percebe como ele é visto… como uma coisa, como infinitamente inferior a eles.
Nós sentimos o mesmo ódio pelos Park naquele momento.
Para completar o cenário, eventualmente os Kim conseguem escapar. Ki-taek, Ki-woo e Ki-jung saem da casa, e é uma caminhada longa até chegar ao lado pobre da cidade onde eles moram, e a direção do filme é astuta ao representar isso visualmente em uma longa caminhada e uma série de escadas a serem descidas… abaixo e abaixo e abaixo. Sempre abaixo. Os Kim descem e descem até chegar em casa, embaixo de uma chuva forte, e o cenário que encontram na rua em que moram é devastador. A casa está alagada, todas as coisas arruinadas, e o sofrimento pelo qual eles passam é grandíssimo. Enquanto o lado rico da cidade não precisa se preocupar com uma chuva – nem mesmo o garoto que está dormindo do lado de fora de casa, em uma barraca. Para mim, a cena mais forte é a de Ki-jung sentada no vaso para impedi-lo de se abrir, fumando…
Horrível de se ver.
O encaminhamento final do filme é inteligente e nos prende. Conseguimos sentir tudo o que os Kim estão sentindo, porque o roteiro nos guiou para isso incrivelmente bem. Eles nos mostraram a diferença entre os Kim e os Park, e agora isso fica mais evidente que nunca no dia seguinte à chuva. Com o aniversário de Da-song “arruinado”, os Park planejam uma festa de última hora, enquanto os Kim estão sem uma casa para morar, abrigando-se em um ginásio, junto com dezenas de outras famílias… e percebemos o quanto os Park não têm a mínima noção de nada. Enquanto os Kim sofrem, os Park esbanjam, como se não fosse nada, em vinhos caríssimos para a festa, em comida em abundância, e é deprimente perceber como isso não significa nada para eles. A futilidade com que levam a vida, a frieza com que tratam os Kim… como se não fossem humanos.
Porque eles não os veem como humanos…
Apenas como empregados.
Toda vez que vinha um comentário do tipo “Você vai ganhar hora extra por isso, é seu trabalho!”, sentíamos nosso sangue ferver, a tensão e a raiva escalando rapidamente, mas isso não torna o clímax do filme menos impactante. Mas eu devo dizer que eu AMEI. Foi impressionante, me deixou nervoso, angustiado, me sentindo mal, mas era o que era preciso – era o único lugar a que podíamos chegar com a história que “Parasita” nos contou. A festa acaba virando uma assustadora matança, e é genial a maneira como o filme faz isso: de forma crua. Não há dramatização, tudo é rápido, brutal e real. Como seria. Geun-sae saindo do porão para vingar a morte da esposa, atacando Ki-woo, depois atacando (e matando) Ki-jung, e então Ki-taek sai em defesa da família e o mata com um espeto (!), e o momento mais forte: quando o Sr. Park não se importa com nada disso. Eu sei que ele queria levar o filho ao hospital, mas o fato de ele tapar o nariz para se aproximar de Ki-taek e Geun-sae… é mesmo revoltante. Então Ki-taek age no impulso.
E mata o Sr. Park.
Dali para a frente, pouco sabemos do que aconteceu com os Park, mas é simples: eles são ricos, eles recomeçaram a vida em outro lugar. O Sr. Park morreu, Da-song está traumatizado com aniversários pelo resto da vida, a família nunca mais será a mesma. Mas o sofrimento pelo qual a família pobre precisa passar… é indescritível. Os anos que Ki-taek precisa passar escondido no porão da casa, se esgueirando para cima para roubar comida e não morrer de fome, esperando que um dia o seu filho receba a sua carta em Código Morse, e entenda que ele está ali… esperando que um dia, em um futuro distante, eles possam tirá-lo de lá… Ki-woo vai fazer isso, ele “tem um plano”… ele vai ficar rico, vai comprar a casa, e então ele poderá subir, ver a luz do sol, encontrá-los no jardim e abraçá-los. Um dia. Até lá, ele tem que esperar. É doloroso, é forte, e é o retrato perfeito da diferença de classes. Park vs Kim. O filme incomoda, angustia, nos faz deixar o cinema nervosos, impressionados, mexidos. Talvez em silêncio contemplativo…
Mas ele certamente marca.
Um filme realmente impressionante.


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