Sítio do Picapau Amarelo (2002) – Dom Quixote das Crianças



Dona Benta conta uma história…
Essa é uma história surpreendente desde a estreia do “Sítio do Picapau Amarelo” em 2001. A obra de Monteiro Lobato com os personagens do Sítio é dividida em três partes, e em uma delas nós temos as releituras do autor, que é o caso de “Dom Quixote das Crianças”, “As Aventuras de Hans Staden” e “Peter Pan”, por exemplo. Nessas histórias, embora talvez esteja acontecendo algo mais no Sítio, o foco do livro é a Dona Benta lendo uma história para as crianças. E, pela primeira vez, a versão de 2001 do “Sítio” usa esse conceito também em seus episódios, e se já tivemos uma breve visita do Dom Quixote ao lugar na primeira parte de “O Picapau Amarelo”, agora o vemos apenas como parte da leitura de Dona Benta. A trama da história é também motivada por uma “vingança” da Cuca e um feitiço que deixa Ênio, o sobrinho do Coronel Teodorico, parecido com o Dom Quixote…
…quer dizer, ele se torna os personagens dos livros que lê, não?
Brincando de “Cavaleiros da Ordem do Picapau Amarelo”, as crianças ficam com saudade do Dom Quixote e pedem que a Dona Benta volte a lhes contar a história do ilustre personagem, enquanto o Coronel Teodorico conversa com a senhora e diz que está preocupado com seu sobrinho, Ênio, que é um garoto inteligentíssimo que adora ler, mas que nunca sai de casa. Assim, Dona Benta o convida a passar um tempo com eles no Sítio, e ele acaba sendo pego em toda uma confusão que envolve a Cuca e o Saci. A bruxa está inconformada com o fato de o Saci ter se tornado amigo do Pedrinho (!), então para provar que ele ainda é mau, como devia ser, prepara um feitiço contra o Pedrinho, um feitiço que o prenderá no primeiro livro que ele abrir para ler, mas para que sua “vingança” faça sentido, ela quer que o próprio Saci jogue a poção no amigo.
Falamos muito sobre LEITURA nessa semana, e tudo começa quando um dos vizinhos de Dona Benta vem pedir “História do Mundo para Crianças”, de Monteiro Lobato, emprestado, porque o filho precisa fazer um trabalho para a escola… ali, Dona Benta tem a ideia de inaugurar uma espécie de “biblioteca comunitária”, onde possa emprestar os seus preciosos livros para que todos possam lê-los! E tudo bem a calhar quando o Elias Turco vende um triciclo caindo aos pedaços para o Tio Barnabé, mas os animais o ajudam a reformá-lo e o deixam muito bonito… além de o Conselheiro ter descoberto um possível talento para a pintura (!), o triciclo é IDEAL para ser transformado em uma biblioteca ambulante, que Emília nomeia de BICICLOTECA. A inauguração é um sucesso, e as crianças emprestam MAIS DE 100 LIVROS só no primeiro dia da ideia!
Em meio a tudo isso, e com a chegada de Ênio, o sobrinho tímido, quieto e, talvez, um pouquinho esquisito, do Coronel Teodorico, Dona Benta começa a leitura do “Dom Quixote”, e eu ADORO a crítica, embora suavizada na série, que Monteiro Lobato faz à escrita arcaica e “nada compreensível”, dizendo que as línguas estão em transformação, e precisam se atualizar. Por que NÃO É VERDADE?! Quando Dona Benta começa a ler, as crianças reclamam que “daquele jeito não dá para entender”. Então, a vovó começa a contar “com suas próprias palavras”, de uma forma que seja mais acessível para as crianças, e é por isso que a história se chama “Dom Quixote das Crianças”. Isso me lembra muito um trecho lá de “Reinações de Narizinho”, o livro, quando Dona Benta está lendo a história do Pinóquio para as crianças, e Monteiro Lobato nos diz:

“A moda de Dona Benta ler era boa. Lia ‘diferente’ dos livros. Como quase todos os livros para crianças que há no Brasil são muito sem graça, cheios de termos do tempo da onça ou só usados em Portugal, a boa velha lia traduzindo aquele português de defunto em língua do Brasil de hoje. Onde estava por exemplo, ‘lume’, lia ‘fogo’; onde dava com um ‘botou-o’ ou ‘comeu-o’, lia ‘botou ele’, ‘comeu ele’ – e ficava o dobro mais interessante”

Tem como não amar?
Dona Benta inicia, então, o Dom Quixote, a história do fidalgo que de tanto amar ler histórias de cavaleiros, resolveu sair ao mundo como um CAVALEIRO ANDANTE, talvez de miolo um pouquinho mole, mas de coração generoso. Ele veste uma armadura velha de seu avô e sai pela rua, vendo as coisas “ao contrário”, e é maravilhoso ouvir a Dona Benta contar-nos histórias, por um bom tempo… quase nos sentimos seus netos! Depois de sair para o mundo, Dom Quixote se depara com uma estalagem, que pensa ser um grande castelo, e entra em busca de um cavaleiro que o arme cavaleiro andante, e para isso, ele precisa passar a noite velando as armas do castelo, como manda a tradição. Na manhã seguinte, graças a todas as confusões que arma, o estalageiro o ordena CAVALEIRO de uma vez, apenas para que possa se livrar do louco homem.
Se durante a noite Dona Benta conta suas histórias, durante o dia as crianças tentam envolver Ênio em suas brincadeiras, como pescar no ribeirão, e é ali que, quando o Saci joga o feitiço sobre ele, ele se transforma pela primeira vez. Ele está lendo “Mogli, o Menino-Lobo”, e se torna o próprio Mogli, saindo sozinho pelo meio da mata, o que é um perigo e tanto. Logo ele volta ao normal, no entanto. Mais tarde, ele pega um dos livros de Dona Benta, o “Drácula”, e se torna um vampiro com direito a virar morcego e assustar as crianças no quarto e tudo! Quando Emília grita por ajuda, ela conta a todos que “o Ênio ficou louco que nem o Dom Quixote”. Ninguém sabe bem o que está acontecendo, mas convidam o garoto, depois que ele volta ao normal, para passar a noite ali com eles… mas claro que ele não consegue dormir, e fica inquieto, lendo mais e mais…
Na manhã seguinte, quando as crianças estão emprestando livros na Bicicloteca, Ênio se torna o ROBIN HOOD e “rouba” um carrinho de sorvetes para distribuir aos pobres. E devo dizer: como Robin Hood foi quando ele esteve mais bonitinho! Enquanto isso, a Cuca fica FURIOSA com o Saci por ter jogado a poção no garoto errado, e ameaça denunciá-lo ao Conselho dos Seres da Mata (CONSEMA) e caçar sua carapuça. Assim, começa um dos momentos mais divertidos da história inteira: O JULGAMENTO DO SACI! Uma verdadeira confusão, com a Mula-Sem-Cabeça como a juíza, uma cópia do Saci como advogado de defesa, e um monte de artimanhas, como chamar o Tio Barnabé para ser sua “testemunha”, só porque sabe que o Tio Barnabé nunca diria que ele é “bom”. Muito astuto da parte do Saci, mas a Cuca também é esperta…
Convoca sua própria testemunha: O PEDRINHO.
O Saci sabe que se o Pedrinho disser que eles são amigos, ele estará ferrado com o CONSEMA, e eu adorei ver isso tudo se desenrolar. Porque a Coruja, que foi convocar o Pedrinho, foi bem esperta, e já o chamou dizendo que “eles queriam caçar a carapuça do Saci por ele ser seu amigo”, então o Pedrinho foi ao julgamento determinado a ajudá-lo. A Cuca, como promotora, faz as perguntas certinhas, mas ele também faz os comentários certos, e quando a advogado de defesa pergunta se é verdade que ele e o Saci são amigos, ele diz que “não”, como ele seria amigo de alguém que faz tantas maldades contra ele? E ele nem precisou mentir! De quebra, o Pedrinho descobre, no julgamento, o que está acontecendo com o Ênio, e o Saci, astuto, sugere à juíza que a Cuca precisa ser punida por fazer uma acusação falsa, e diz que ela deveria desfazer o feitiço que lançou no garoto.
A Mula-Sem-Cabeça aceita a sugestão!
Nas suas últimas transformações, o Ênio primeiro vira o próprio Dom Quixote, atacando os animais (“Por que esses Cavaleiros sempre implicam comigo?”), e cai no lago do Sítio em busca de sua Dulcineia, e depois vira a Fera e sequestra a Narizinho, quando começa a rolar um clima entre eles. Inclusive, depois que ele vai embora, em uma despedida bem fofa (adorei ele dizendo à Emília que “ela podia ser personagem de livro”, e ela respondendo: “Eu já sou. A personagem mais famosa do Sítio”), ele manda cartas para contar como está e para dizer que resolveu seguir os conselhos de Dona Benta e se dedicar a escrever livros… uma das cartas foi enviada ao Coronel Teodorico, que vai ai Sítio contar as novidades para todo mundo, mas a outra foi escrita apenas para a Narizinho, e ela sai correndo, perseguida pelo Pedrinho e pela Emília, curiosos para saber o que está escrito.
O fim da história do Dom Quixote a Dona Benta conta, chegando à sua triste morte, e Emília fica inconformada, diz que “se dane a natureza”, e sai correndo pra brincar sem ouvir o final, porque se recusa a ouvir a morte de Dom Quixote – diz que vai levá-lo vivinho em sua mente. Eu achei tão bonitinho, porque a dor na voz inconformada da Emília era sincera, ela realmente não queria que ele morresse. É um momento importante e melancólico para o “Sítio do Picapau Amarelo”, que deixa a Tia Nastácia e o Visconde de Sabugosa chorando, mas que exalta a beleza da história escrita por Miguel de Cervantes, que precisava “dar um fim” à vida do nobre cavaleiro, de miolo mole e coração puro. Narizinho até tenta contar para a Emília como ele morreu, mas a boneca se recusa a ouvi-la, tapando os ouvidos e cantarolando para abafar o som.
Quem nunca, não é?!

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