Crônicas Lunares, Livro Um – Cinder (Marissa Meyer)


Cinder tem dezesseis anos e é considerada uma abominação tecnológica pela maior parte da sociedade e um fardo por sua madrasta. Por outro lado, ser ciborgue tem suas vantagens: a interface de seu cérebro lhe deu a capacidade sobre-humana de consertar tudo – robôs, aerodeslizadores, os próprios membros cibernéticos quebrados –, tornando-a a melhor mecânica de Nova Pequim. Sua reputação faz com que o herdeiro do império, o príncipe Kai em pessoa, apareça em seu estande na feira, solicitando um conserto de um androide antes do baile anual.
Embora esteja ansiosa para agradar o príncipe, Cinder é impedida de trabalhar no androide quando Peony, sua meia-irmã e única amiga, é infectada por uma peste fatal que tem assolado a Terra por anos. Culpando-a pelo destino da filha, a madrasta de Cinder a entrega como voluntária para as pesquisas da doença, uma “honra” a qual ninguém sobreviveu até então. Logo, porém, os pesquisadores descobrem algo de incomum na cobaia recém-adquirida. Algo pelo qual há quem esteja disposto a matar.

“Ela era um ciborgue, e nunca iria ao baile”
Tenho alguma fascinação por clássicos da literatura que são reimaginados, e sabemos que há a tendência atual de fazer isso. Contos de fada são, constantemente, escolhidos para novas versões nas mais variadas mídias, que variam da literatura aos filmes e séries. Embora eu tenha essa queda inicial, Cinder, de Marissa Meyer, me instigou por um motivo específico: a proposta cibernética. Reimaginar contos de fadas clássicos acontece recorrentemente, por vezes sob outro ponto de vista, às vezes tudo é reformulado – aqui a autora traz uma proposta diferente que mescla o clássico fantasioso à delícia da ficção científica. Gosto demais da maneira como a autora mesclou os dois gêneros e ambientou o seu romance em Nova Pequim, uma sociedade futurística, governada por um imperador e que está em constante ameaça de entrar em guerra com o povo de Luna – ou seja, os moradores da Lua. Há muito misticismo mesclado à ciência, e o livro vai por vertentes mais fantasiosas e românticas do que científicas, mas certamente te instiga do começo ao fim.
E eu adorei.
Se vamos falar de “Cinder” como uma proposta de releitura de um clássico, eu tenho muito o que dizer. Cinder, obviamente, se refere a Cinderela, um dos contos de princesas mais famosos até hoje – mas, de maneira inteligente, a autora recria toda uma nova história, independente de qualquer amarra da original, buscando referências nos eventos de forma divertida e dinâmica. Você fica prestando atenção, por exemplo, quando o Príncipe Kai é apresentado. Você fica maravilhado pela maneira como um pouco do clássico está envolvido ali, na condição de Cinder, na estrutura de sua família, mas há tanta coisa acontecendo o tempo todo. O baile convencional é substituído por um Festival Anual ao qual Cinder nem quer ir, mas precisa chegar para avisar o Príncipe sobre um perigo que ele corre ao se casar com a Rainha Levana, de Luna. Não há fadas madrinhas, embora Iko talvez seja uma representação dela, e a carruagem que leva Cinder ao “baile” é um carro antigo que ela mesma conserta. Já o sapatinho que cai nas escadas é substituído pelo pé cibernético de Cinder, em um momento crucial da trama quando a verdade de Cinder é revelada ao Príncipe.
Ah, e também há uma rápida aparição da equivalente a Rapunzel!
Mas perceba o quanto a história é grandiosa. Eu acredito que cada coisa que Marissa Meyer pegou para, de uma forma ou de outra, incorporar ao seu livro, são apenas divertidas referências que tornam a leitura ainda mais bacana – mas o livro e sua história se sustentam independentemente de Cinderela. Cinder, inicialmente, já apresenta toda uma discussão pertinente sobre os ciborgues, que são humanos com partes de máquina incorporados, que são uma alegoria a pessoas com deficiência e à forma como eles são tratados com preconceito pela sociedade. É triste pensar que em tantos futuros distópicos estejamos enfrentando tão fortemente um retrocesso... é para esse retrocesso que caminhamos? Me lembrou um pouco de Kira, em A Escolhida (Lois Lowry) e a maneira como ela é vista pela comunidade. Mas Cinder é uma protagonista forte, e eu gosto disso. Eu gosto do fato de ela não depender de ninguém, de ela ser toda independente, apesar da prisão a que é confinada, e extremamente certa daquilo que quer.
Também gosto muito do Príncipe Kai. Não só porque ele é todo encantador e bonito (embora a descrição de Marissa Meyer realmente nos faça dar alguns suspiros), mas porque ele é um personagem bem construído. Gostamos dele. Nos contos de fada clássicos, nós temos problemas divergentes: o da mocinha que é salva pelo príncipe no final, o que é absurdo; e o príncipe que NUNCA faz nada demais. Não é o que Marissa Meyer reproduz. Ela cria um Príncipe Kai com personalidade e caráter, e seus próprios enfrentamentos. Quando o pai morre, vítima de letumose, ele precisa encarar a realidade de ter que assumir o cargo de Imperador e, consequentemente, lidar com as ameaças constantes da Rainha Levana, que ameaça atacar a Terra em uma iminente Guerra caso seus desejos não sejam atendidos – o desejo de se tornar Imperatriz. É todo um interessante jogo de poder, uma vez que a Rainha Levana inescrupulosamente manipula os moradores de Luna e pretende estender o seu domínio ao Planeta Terra também, e só pode fazê-lo em uma importante posição de poder aqui embaixo.
No caso, de Imperatriz.
A leitura de Cinder é fluída, as páginas se viram depressa e o vocabulário é simples. De forma linear, alternando entre os pontos de vista de Cinder e de Kai, a autora nos guia pela história com simplicidade, mas apresentando uma imaginação complexa capaz de criar todo um mundo envolvente, repleto de situações. Assim, além de toda a questão cibernética de Cinder e o Festival no qual Kai será coroado, nós temos dois elementos importantes, que se entrelaçam: 1) a letumose, uma doença gravíssima que está acometendo vítimas em toda a Terra; uma espécie de peste que mata depressa e não deixa ninguém com qualquer esperança de cura; e 2) o encanto dos Lunares, que é um processo de dominação da mente alheia, o que os permite manipular pensamentos, emoções e ações. Perfeitamente macabro. Tudo se entrelaça em uma trama intricada que nos envolve e nos faz querer continuar lendo o tempo todo. O próprio fato de Kai ir até Cinder no mercado é importante, porque a androide do Príncipe contém informações sobre a Princesa Selene, sobrinha de Levana que foi considerada morta há alguns anos.
E a Princesa Selene tem muito mais a ver com Cinder do que ela imagina.
Muito mais.
Cinder é uma personagem emblemática. Nós gostamos muito dela, mas nós chegamos, em algum momento, a questionar o quão humana e o quão máquina ela é. O interessante é perceber o quanto ela mesma não conhece de si mesma, e o quanto o seu passado apagado desde antes de ela ser transformada em ciborgue é misterioso. Cinder, imune ao vírus da letumose, acaba sendo cobaia dos estudos nos laboratórios do palácio e encontrando Dr. Erland, que tenta protegê-la de qualquer maneira – o que parece muito mais difícil quando Levana desce a Terra e a identifica como uma Lunar. A tensão é impressionante enquanto descobrimos mais e mais coisas sobre Cinder, sobre como ela é imune, um ciborgue e lunar; e, por fim, a própria Princesa Selene. E Kai não descobre nada disso, mas se apaixona por ela. Não descobre nada até que as coisas atinjam proporções gigantescas e desesperadoras. E então o livro está próximo demais do fim para que tudo possa se resolver. Prisioneira no Palácio e prestes a ser levada por Levana e morta em Luna (já que é a única que pode tirar Levana do poder), Cinder usa seus poderes pela segunda vez (a primeira vez, no baile, contra a Rainha é FENOMENAL!) e escapa, indo atrás do Dr. Erland para a África.
Mal posso esperar para vê-la encontrar Scarlet no segundo volume.
Também me pergunto onde Kai entrará daqui pra frente!

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