Desventuras em Série, Livro Quarto – Serraria Baixo-Astral


Como ser Baudelaire e ter uma “sorte” “exorbitante”.
Esse livro me conquistou PLENAMENTE. Li pela primeira vez quase 10 anos atrás, então naturalmente havia muitas coisas das quais nem me lembrava! E o principal que eu tenho a dizer depois de ler o livro é WOW! O melhor livro dentre os quatro até aqui, Serraria Baixo-Astral tem uma atmosfera diferente dos demais Desventuras em Série. Ah, claro, Lemony Snicket abusa das cenas horríveis e de uma tristeza profunda para a vida dos Órfãos Baudelaire, mas, dessa vez, é quando atingimos o momento mais SÉRIO da série até então, e trabalhamos com um suspense crescente que é melhor do que qualquer ação desenfreada – essa está reservada ao clímax no excelente Capítulo Doze, um dos melhores e mais chocantes capítulos que compõem a série como um todo. Sou fascinado pela linguagem, sou fascinado pelo humor mesclado aos horrores, e sou fascinado pela tensão que Lemony Snicket cria mais intensamente que em qualquer outro… e justamente no livro que MENOS figura o pérfido Conde Olaf.
Mas a vida dos Órfãos Baudelaire é uma desgraça atrás da outra de todo jeito.
A carta de Lemony Snicket, antes de tudo:

Caro Leitor,

Para o seu bem, espero que ao escolher este livro você não tenha sido movido pelo desejo de uma leitura agradável. Se seu desejo era esse, aconselho que feche o livro imediatamente, pois, de todos os volumes que contam a vida infeliz dos órfãos Baudelaire, SERRARIA BAIXO-ASTRAL talvez seja o mais triste até agora. Violet, Klaus e Sunny Baudelaire são mandados a Paltryville para trabalhar numa serraria, e ali, lamento informar, deparam-se com coisas terríveis, tais como uma gigantesca pinça mecânica, bifes do tipo sola de sapato, uma hipnotizadora, um horrível acidente que causará ferimentos e um homem com uma nuvem de fumaça no lugar da cabeça.
Prometi escrever a história completa dessas três pobres crianças, mas você não fez nenhuma promessa de lê-la. Portanto, se preferir histórias mais confortadoras, não tenha cerimônia: sinta-se inteiramente livre para fazer outra escolha.

Respeitosamente,
Lemony Snicket

Vou começar comentando o seguinte: eu sempre encarei a carta de Lemony Snicket na parte de trás dos livros e suas insistentes declarações de que deveríamos estar lendo outras coisas como uma espécie de piada. Macabra, mas uma piada. Serraria Baixo-Astral começa com uma explanação sobre como, muitas vezes, a primeira frase de um livro nos indica qual é o tipo de história que teremos pela frente. Assim, a “primeira” frase do livro (repetida umas quatro vezes) é apresentada na segunda página, e é: “Os órfãos Baudelaire olharam através da janela suja do trem e contemplaram o negrume melancólico da Floresta Finita, pensando se algum dia a vida deles melhoraria”. Lamento dizer que, como Lemony Snicket, eu digo isso agora: Serraria Baixo-Astral é MESMO devastador, triste, deprimente. Não há UM ÚNICO momento bom no meio do livro e, em algum momento, eu estava mesmo tão triste e revoltado que eu cogitei largar o livro. Não para sempre, porque eu adoro Desventuras em Série, mas eu precisava respirar…
E é a primeira vez na série que isso me acontece.
O livro começa quando o Sr. Poe está em um trem sujo levando os Órfãos Baudelaire para seu novo “lar”, e ele deixa claro que ele será de ainda MENOS ajuda nesse livro do que em todos aqueles que o precederam – e se alguma coisa der errado dessa vez, ele os mandará para um Colégio Interno, a sugestão clara do próximo livro da série. Paltryville, onde as crianças são deixadas sozinhas, é uma cidade horrível, já é possível de se notar em uma primeira olhada. Ainda é nojento ter que olhar para a abominável placa da “Serraria Alto-Astral” feita com chicletes mascados e, pior, para um prédio em formato de olho. Exatamente como a tatuagem do Conde Olaf, e isso já apavora os Baudelaire em sua terrível chegada – porque isso não pode ser apenas uma infeliz coincidência. Logo em seguida, os Baudelaire recebem um TERRÍVEL memorando que faz Lemony Snicket falar sobre Beatrice, talvez mais do que jamais tenha falado até então.
Com exceção das maravilhosas e sinistras dedicatórias.
O memorando vem do novo tutor dos Baudelaire, e é frio o suficiente para deixar evidente que não haverá NENHUM tipo de carinho ou cuidado – tudo é excessivamente mecanizado. O dono da serraria mal aparece, o capataz é um pesadelo, e os Baudelaire são obrigados a TRABALHAR na serraria e morar numa beliche com os demais empregados. Assim, o otimismo de Phil e o “nunca se sabe” que os Baudelaire se permitiram depressa desaparece. Minha impressão era de que, em Serraria Baixo-Astral, as crianças nem precisavam de Conde Olaf para atormentar a vida delas, porque tudo já era um pesadelo terrível. A trama do livro é séria. Não apenas exploração do trabalho infantil, mas a representação de uma condição de escravidão – os funcionários são explorados, humilhados e pausam para um “almoço” de apenas 5 minutos que consiste em CHICLETE! E o “salário” deles são tickets ridículos que não servem para nada.
É uma boa e séria discussão.
A paisagem é perturbadora: “Obviamente, a você e a mim não causará grande surpresa saber que o primeiro dia dos órfãos Baudelaire na Serraria Alto-Astral foi horrendo”. Sunny faz comentários maravilhosos, ao estilo dos comentários dos irmãos, que são brilhantemente (e ironicamente) traduzidos por Lemony Snicket, como o “Wora” que, segundo o autor, significa “Se naquele dia alguém tivesse me dito que em pouco tempo eu estaria usando meus dentes para descascar árvores, eu diria que essa pessoa era psiconeuroticamente perturbada”. O livro é bem metafórico, construído em cima de suspense – e a única luz parece surgir quando os irmãos conhecem Charles, e ingenuamente nos permitimos ter alguma esperança de que tudo tenha sido um mal-entendido, mas não. O misterioso “Senhor”, cujo nome ninguém consegue pronunciar, cujo rosto ninguém conhece por estar coberto por uma nuvem de fumaça, garante:
AS CRIANÇAS DEVEM TRABALHAR NA SERRARIA!
Tudo parece acentuadamente perturbador. A aparência de Senhor. A biblioteca de apenas três livros. A capa do livro da Dra. Orwell que traz um olho, exatamente a marca do Conde Olaf. O Conde Olaf, por sua vez, que demora a aparecer, é uma presença contínua e angustiante porque os Baudelaire SABEM que ele tem que estar ali por perto, mesmo que não tenha aparecido…

“Dias dolorosos se seguiram a dias dolorosos, o tempo passou e, embora os Baudelaire estivessem convencidos de que ele devia estar por perto, o Conde Olaf simplesmente não deu sinal de vida. Era uma situação muito intrigante. Muito enigmática”.

Resumidamente: eu ADORO a construção do SUSPENSE, que foi o que me marcou em Serraria Baixo-Astral. Como quando os óculos de Klaus se espatifam e ele é levado por Charles (tão gentil, mas tão inútil) justamente ao prédio em forma de olho! A partir dali, a construção do suspense é mais forte do que nunca. Klaus passa o resto do dia ausente, as irmãs ficam preocupadas até o meio da madrugada, e enfim ele aparece, todo estranho, quase que lobotomizado, embora esteja mais para hipnotizado mesmo. É meio traumatizante (angustiante, dá raiva, e foi ali que quase segui o conselho de Lemony Snicket de fechar o livro) vê-lo assim! Dizendo “Sim, senhor” para a irmã, deixando-as assustadas e o observando dormir, com a sensação de que o irmão ainda não voltou para elas. É muito triste perceber isso, porque a grande força dos Baudelaire está em sua união e no fato de que eles têm um ao outro.
Como lidar se elas não “têm” mais o Klaus?
O Conde Olaf, propriamente dito, só aparece pela primeira vez DEPOIS da página 100, o que é uma surpresa, mas fez bem ao livro. A intenção era essa: fazer com que questionássemos “Onde está o Conde Olaf?” E aqui está ele. Depois de agir estranho a manhã toda e causar um terrível acidente que custa a perna de Phil, o otimista, Klaus acorda da hipnose acidentalmente, e o Capataz Flacutono faz com que ele caia e quebre seus óculos novamente, mas dessa vez Sunny e Violet não deixam que ele vá encontrar a Dra. Orwell sozinho, e vão com ele. Os três irmãos juntos no prédio em formato de olho, encontrando a oftalmologista aparentemente tão doce. Tão doce quanto o meu do provérbio. E ali, de recepcionista, encontramos o Conde Olaf. Ou melhor, SHIRLEY. Não vou dizer que “Shirley” não tem um de seus melhores planos até o momento: mancomunado com a oftalmologista e o capataz, “ela” quer fazê-los causar acidentes e prejuízos à serraria, para que o “Senhor” se desfaça deles e passe a guarda a quem…?
Shirley, obviamente.
Assim, com um Baudelaire a menos, são as meninas sozinhas quem precisam trabalhar para salvar o seu irmão da hipnose – assim, mesmo que seja mais uma inventora que uma pesquisadora, Violet lê um livro difícil na tentativa de descobrir algo que possa ser útil. E DESCOBRE. A tempo de ouvir o “hummm” assustador de uma máquina na serraria e correr para lá com Sunny para presenciar uma cena PERTURBADORA. Amarrado às toras está o inútil mas absolutamente gentil Charles, prestes a morrer na serra elétrica, e quem está empurrando a tora para a morte inevitável e assustadora de Charles é KLAUS BAUDELAIRE. Confesso: é angustiante. Porque você se habituou a ver, no mínimo, uma morte por livro em Desventuras em Série, mas ver Klaus ser o responsável por um ASSASSINATO não é algo que você está preparado para ler… então você se abraça, se contorce e espera, no melhor clímax que a série viu até o quarto livro!
Tensão acima de tensão, temos pouco Olaf e MUITO SUSPENSE. Charles está cada vez mais próximo da morte, Violet descobre a palavra que o faz obedecer (“sortudo”), mas sofre para descobrir a palavra para liberá-lo da hipnose (“exorbitante”) e os segundos se prolongam em uma tensão palpável. O nó da garganta (e não por causa do caroço do pêssego) nos sufoca. Mas dá certo. Violet salva Klaus da hipnose, o que ainda não quer dizer muito – porque Charles continua à beira da morte cruel. Chega, portanto, a conclusão da belíssima inversão de papéis que começou na biblioteca de três livros quando Violet se tornou uma pesquisadora: mesmo sendo mais um leitor que um inventor, Klaus é o único que pode inventar alguma coisa que vá salvar a vida de Charles, e faz isso BRILHANTEMENTE. Ufa, é reconfortante quando Charles, por pouco, se salva. Ainda assim, um acidente fatal continua ocorrendo, e é quando o Senhor chega e, no susto (depois da luta de espada e dente), a Dra. Orwell dá um passo para trás…
…e cai na serra ligada.
Wow!
O livro não é tão gráfico em como foi, mas eu imagino, e o estrago é gritante. Meu rosto naturalmente se franze e meu coração se acelera ao pensar no horror presenciado pelas crianças, na quantidade de sangue… enfim. Então, temos o MELHOR FINAL DE TODOS. As crianças estão chocadas com tudo o que viram, e depois que o Conde Olaf e o capataz se revelam e fugem, os Baudelaire não são mais bem-vindos na serraria, pois só trazem desgraça, e então eles se despedem das duas únicas pessoas que foram boas com eles e de quem sentirão saudade: o otimista Phil e o mole e gentil Charles. E se preparam para o Colégio Interno. O último momento é muito próximo dos dois livros anteriores. A Sala dos Répteis falou sobre como eles eram brilhantes. O Lago das Sanguessugas como eram agradecidos. Serraria Baixo-Astral, ironicamente, fala de como eles são sortudos. Eles têm sorte de estarem vivos e de estarem juntos, novamente…

“Eles estavam vivos, e ali, juntos diante da janela partida, parecia que a palavra final para definir a situação deles seria ‘sortudos’, justamente aquela que desencadeara tantos problemas para eles. Os órfãos Baudelaire estavam vivos, e, se pensarmos bem, na verdade a sorte que tiveram talvez tenha sido mesmo exorbitante”.

Não posso evitar um arrepio. MEU LIVRO FAVORITO ATÉ AQUI! <3

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