Jogos Vorazes: A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes (The Hunger Games: The Ballad of Songbirds and Snakes, 2023)

“It’s the things we love most that destroy us”

De volta à Panem em um filme ESPETACULAR! Suzanne Collins escreveu uma das minhas sagas literárias favoritas com “Jogos Vorazes”: uma distopia meticulosamente pensada como uma crítica social inteligente. Com elementos de ação, drama e ficção científica, a trilogia tece críticas à diferença de classes, à opressão do sistema, à espetacularização da mídia e tanto mais! A obra original ganhou uma prequel em 2020, intitulada “A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes”, cuja adaptação cinematográfica foi lançada no último dia 17 de novembro e, assim como todas as adaptações anteriores de “Jogos Vorazes”, É UM FILME INCRÍVEL – e um verdadeiro exemplo de como as histórias podem ser transpostas de uma mídia a outra mantendo sua essência, sua trama e suas críticas.

Comentei sobre o livro “A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes” e você pode ler clicando aqui.

“Jogos Vorazes: A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes”, se passa 64 anos antes da Colheita na qual Katniss Everdeen se voluntariou como tributo para salvar sua irmã mais nova, Primrose. Aqui, no ano da 10ª edição dos Jogos Vorazes, encontramos uma Capital ainda muito marcada pela guerra recente em Panem, fazendo de tudo para manter o seu controle autoritário e opressor sobre os distritos rebeldes, sempre disposta a amedrontá-los em uma tentativa constante de “mostrar quem manda” e impedir um novo levante. É aqui, na 10ª edição dos Jogos, que as coisas se transformam para se tornar o que conhecemos eventualmente: um espetáculo sangrento e injusto no qual se aposta na vida de crianças inocentes e se assiste, com prazer, aos seus assassinatos.

O que eu mais gosto em “Jogos Vorazes: A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes” é o fato de termos uma mudança de perspectiva e acompanharmos, dessa vez, a narrativa do ponto de vista do opressor e não do oprimido. O protagonista do livro e do filme é um jovem Coriolanus Snow, que viria a se tornar o Presidente Snow que conhecemos em “Jogos Vorazes”: um jovem falido da Capital, prestes a se formar na Academia, e desesperadamente querendo colocar as mãos no Prêmio Plinth, que o ajudaria a ir para a Universidade e manter o status de uma das famílias mais influentes da Capital… Snow é um jovem ambicioso e sem escrúpulos, que, diferente de alguns de seus colegas também da Capital, não vê nenhum problema nas ações da elite dominante, como os Jogos Vorazes.

Ele os aplaude. Ele tenta perpetuá-los.

É graças a ele que os Jogos Vorazes duram mais 65 anos.

A grande característica de Coriolanus Snow é o egoísmo – e não se engane: tudo o que ele fez, ele fez exclusivamente por si próprio. Quando os Jogos Vorazes parecem fadados a terminar porque “ninguém mais está assistindo”, a Dra. Gaul, Idealizadora dos Jogos, propõe uma mudança ao designar um jovem da Capital como mentor de cada um dos tributos escolhidos na Colheita – e a missão deles é tornar os Jogos Vorazes “interessantes”. Conforme o povo de Panem gradualmente despertava para o horror do conceito e se recusava a assistir ao brutal assassinato de crianças inocentes em uma arena, os estudantes da Academia eram incentivados a “atrair público”, a transformar os Jogos Vorazes em um “espetáculo”, e são as ideias de Coriolanus Snow que tornam isso possível…

É Snow quem espetaculariza os Jogos Vorazes.

Isso é, talvez, o que eu mais gosto em “Jogos Vorazes: A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes”: a maneira inteligente como a prequel nos permite entender como as coisas chegaram a ser o que conhecemos. É aqui, na 10ª edição dos Jogos Vorazes, que Coriolanus faz com que Lucy Gray chame a atenção e convence os seus superiores de que “as pessoas da Capital precisam conhecer os tributos para poder ter por quem torcer e por quem torcer contra”. Toda aquela parafernália que conhecemos em “Jogos Vorazes”, com as entrevistas antes da arena, por exemplo, se origina aqui. E é a proposta das apostas e doações que inicia, também, um processo de prolongamento de um “evento” que costumava durar um ou dois dias no máximo… os Jogos Vorazes se tornam um show.

O distanciamento da Capital à realidade e a humanidade dos tributos, sempre visível em “Jogos Vorazes”, é marcada aqui pelo transporte dos tributos dos Distritos à Capital e pela maneira como eles são literalmente jogados em uma jaula no zoológico, para exposição até a entrada na arena… e Lucy Gray Baird, a menina tributo do Distrito 12, é a segunda protagonista de “Jogos Vorazes: A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes”, e ela me encanta. Membro do Bando, Lucy Gray é uma artista que usa os seus dons musicais a seu favor, e pede que Coryo acredite que ela possa vencer e não a deixe morrer na arena no dia seguinte. Amo as cores de Lucy Gray, amo a sua força em parte fingida para “assumir o controle da situação” e, é claro, eu amo o seu deboche ácido.

Torcemos por Lucy Gray Baird e acompanhamos com fascínio à maneira como Coriolanus Snow faz de tudo para mantê-la viva e torná-la vencedora dos Jogos Vorazes: não porque de fato se importe com ela, mas porque ele sabe que vencer deve lhe garantir o Prêmio Plinth que ele tanto almeja… ironicamente, ele pode fingir que se importa, de fato, com Lucy Gray, até para si mesmo se isso ajuda a aliviar sua consciência, porque como o Reitor Highbottom comenta, é muito conveniente para ele que a vida de Lucy Gray e o Prêmio Plinth não sejam objetivos divergentes. A sequência da arena é, como esperado, repleta de ação, tensão, horror, surpresas e, quiçá, trapaças… afinal de contas, é Coryo quem salva a vida de Lucy Gray das serpentes bestantes de Gaul.

Quando Gaul estava disposta a não ter nenhum vencedor naqueles Jogos.

Curiosamente, eu sinto que minha experiência no cinema foi menos impactante do que eu esperava por eu já ter lido o livro e o ter lido recentemente. Não me entenda mal, “Jogos Vorazes: A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes” é uma adaptação INCRÍVEL e extremamente fiel ao material original, mas eu achei impossível não perceber que, embora o filme funcione maravilhosamente bem para o espectador que não leu o livro, como uma boa adaptação deve ser, algumas cenas tiveram seus pesos inevitavelmente reduzidos por causa do tempo de tela… é o caso do anúncio da morte de Felix Ravinstill, por exemplo, que é uma ironia perversa pelo “horror” que a morte de “uma criança da Capital” causa frente às inúmeras mortes das “crianças de Distrito”…

Que, por sua vez, não geram comoção.

Porque essas crianças não são vistas como “seres humanos”.

Assim como no livro, o filme é dividido em três partes, anunciadas oficialmente em tela: “Parte I: O Mentor”, “Parte II: O Prêmio” e “Parte III: O Pacificador”. Embora eu não seja lá um grande entusiasta da onda de “dividir um livro em duas partes na sua adaptação cinematográfica”, que tomou conta do cinema há alguns anos, eu acho que “Jogos Vorazes: A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes” se justificaria em duas partes, com a segunda sendo uma adaptação de “O Pacificador” e mostrando toda a história de Sejanus Plinth, Coriolanus Snow e Lucy Gray Baird no Distrito 12 – e talvez a adaptação se beneficiasse de mais tempo de tela para essa parte da narrativa, que é a que eu sinto que fica mais “corrida”. Seriam dois filmes excelentes e muito diferentes entre si!

Gosto de como o último ato do filme, bem como a última parte do livro, é uma intencional quebra de expectativas… o tom, os cenários e a fotografia são transformados quando adentramos o Distrito 12 e o Bando, em uma trama complexa que nos apresenta à famosa árvore-forca, a uma planta chamada katniss, aos gaios-tagarelas e aos tordos, enquanto Sejanus Plinth se envolve com os rebeldes, na esperança de finalmente poder fazer algo para ajudar as pessoas, e Coriolanus Snow se envolve com o Bando e descobre que, para Lucy Gray Baird, confiança é o elemento mais importante de um relacionamento. É um ambiente riquíssimo e repleto de segredos, tramas e reviravoltas, que acaba sendo explorado rapidamente, dentro do que é possível.

É aqui, como um Pacificador no Distrito 12, que Coriolanus Snow tem suas atitudes mais asquerosas e que mais evidenciam a pessoa que ele é – a pessoa que conhecemos em “Jogos Vorazes”. Primeiramente, quando ele denuncia Sejanus Plinth gravando uma “confissão” do “amigo” com um gaio-tagarela e o enviando para a Dra. Gaul na Capital, o que termina com Sejanus sendo enforcado enquanto chama pelo amigo e pela mãe; depois, quando ele está disposto a fugir com Lucy Gray porque teme que as armas que o ligam ao assassinato de Mayfair, a filha do prefeito, sejam encontradas, mas ele se transforma quando encontra as armas e percebe que, ao se livrar delas, pode acabar com as “pontas soltas”. Todas, menos a própria Lucy Gray.

Então, ele a caça.

O horror dessa sequência final é ESPETACULAR. A maneira como Coryo se transforma no Snow conhecido, como ele evidencia como o que “sentiu” por Lucy Gray jamais foi verdadeiro, porque está disposto a matá-la (e possivelmente o faz) para poder ter a vida com a qual sempre sonhou… e que conquista, finalmente, quando é levado de volta para a Capital e aos cuidados da Dra. Gaul, que o acolhe como seu pupilo para a Universidade, ironicamente bancada pelos Plinth (!), e se transforma na pessoa que sua prima, Tigris, sempre temeu que ele se transformasse: no seu próprio pai. Toda a conclusão do filme é genial, e eu adoro a maneira como transmite a frieza de Coriolanus Snow e a sua satisfação por ter se tornado justamente quem ele queria ser.

É perverso. É irônico. É brutalmente real.

“Jogos Vorazes: A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes” é, definitivamente, UM GRANDE FILME, e se sobressai como uma excelente prequel que se justifica pela história que tem a contar. Com o mesmo tom ácido de crítica social, tocando em feridas e criticando o sistema, o novo “Jogos Vorazes” nos permite conhecer mais da Capital e como os jovens de lá vivem; mais do Distrito 12, em uma época muito anterior a Katniss Everdeen; mais dos próprios Jogos Vorazes e como eles se tornaram a espetacularização do horror e da opressão que conhecemos; e mais de Coriolanus Snow, o jovem que se tornaria o detestável Presidente de Panem contra quem os rebeldes ainda vão conseguir se levantar. Perverso, inteligente, eletrizante e revoltante, “Jogos Vorazes: A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes” é um filme excelente!

Que experiência!

 

Para a review do livro de “A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes”, clique aqui.

Para as reviews dos demais filmes de “Jogos Vorazes”, clique aqui.

 

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