Reinações de Narizinho – Narizinho Arrebitado


Numa casinha branca, lá no Sítio do Picapau Amarelo, mora uma velha de mais de sessenta anos. Chama-se Dona Benta. Quem passa pela estrada e a vê na varanda, de cestinha de costura ao colo e óculos de ouro na ponta do nariz, segue seu caminho pensando:
-Que tristeza viver assim tão sozinha neste deserto…
Mas engana-se. Dona Benta é a mais feliz das vovós, porque vive em companhia da mais encantadora das netas – Lúcia, a menina do narizinho arrebitado, ou Narizinho como todos dizem.

E assim começa a mais célebre das histórias infantis, por Monteiro Lobato!
Tais frases, que explicam quem é Dona Benta e Narizinho, e posteriormente Tia Nastácia e Emília, foram publicadas pela primeira vez em 1920, em um livro independente, o primeiro de Monteiro Lobato para crianças, sua primeira incursão no Sítio do Picapau Amarelo. Depois se tornou a primeira história, o “primeiro capítulo” de Reinações de Narizinho, o mais famoso livro da série, o livro de estréia dos personagens. O lugar no qual podemos conhecer Pedrinho e Narizinho, dois primos que moram no Sítio com sua avó. Narizinho tem uma boneca de pano que parece gente, chamada Emília, e Pedrinho constrói um boneco de sabugo de milho: o Visconde de Sabugosa.
Ler “Narizinho Arrebitado” é uma experiência completamente encantadora. A escrita deliciosa, mesmo antiga, de Monteiro Lobato nos guia por um mundo de fantasia, e eu me sinto viajando em cada frase. Suas sentenças bem construídas valorizam a literatura do século passado sem parecer antigo – nós admiramos todas suas qualidades literárias, nos envolvemos com a história, e ainda aproveitamos a delícia que é passear por todos aqueles lugares. A maneira intensa e verdadeira como ele narra as coisas, como ele coloca as falas dos personagens, tudo tão envolvente que me faz ver um filme em minha cabeça, enquanto as coisas vão acontecendo…
E o que vai acontecendo?
A primeira história conta sobre a primeira visita de Narizinho ao Reino das Águas Claras. Todo dia, ela passeia pelo Sítio e se deita à beira do ribeirão após dar comida aos peixinhos… e comumente acaba caindo no sono. Até que um dia ela acorda com um movimento em seu rosto: um peixinho e um besouro vestidos de gente, conversando! Eles acham que o rosto de Narizinho é uma montanha nova, e param para explorar, e a menina fica toda quieta, admirada e interessada em saber aonde aquilo tudo vai chegar… até que não agüenta mais quando cutucam o seu nariz, e ela precisa espirrar… depois da fuga do besouro, ela explica ao peixinho, o Príncipe Escamado, Rei do Reino das Águas Claras, quem ela é: a menina de narizinho arrebitado que lhes dá comida todos os dias!
E a melhor aventura de Narizinho até então se inicia: ela vai, seguida por sua boneca de pano, muda de nascença, ao Reino das Águas Claras com o Príncipe Escamado. E temos as mais encantadoras histórias: como o Major Agarra-e-Não-Larga-Mais, que dorme em serviço, ou a Dona Aranha, que é uma costureira incrível! Ainda tem a Dona Carochinha, atrás do Pequeno Polegar que fugiu de suas histórias… mas o mais memorável é a cura da boneca Emília, que nasceu muda, mas ganha uma Pílula Falante do Doutor Caramujo e nunca mais deixa de falar… fala por três horas sem parar para tomar fôlego, por causa de toda a “fala recolhida”. Mas a primeira coisa que diz é: “Estou com um horrível gosto de sapo na boca!” E Narizinho entende que a boneca era “de gênio teimoso e asneirenta por natureza”. Todas as coisas que a Emília diz ali.
“[…] tenho notado que muitos dos personagens das minhas histórias já andam aborrecidos de viverem toda a vida presos dentro delas. Querem novidade. Falam em correr mundo a fim de se meterem em novas aventuras. Aladino queixa-se de que sua lâmpada maravilhosa está enferrujando. A Bela Adormecida tem vontade de espetar o dedo noutra roca para dormir outros cem anos. O Gato de Botas brigou com o Marquês de Carabas e quer ir para os Estados Unidos visitar o Gato Félix. Branca de Neve vive falando em tingir os cabelos de preto e botar ruge na cara. Andam todos revoltados, dando-me um trabalhão para contê-los. Mas o pior é que ameaçam fugir, e o Pequeno Polegar já deu o exemplo”.
Para mim, uma clara introdução a O Picapau Amarelo, de 1939.
O que mais me encanta é a liberdade de Monteiro Lobato… a autonomia que ele tem para criar sua história, a mais célebre história infantil escrita no Brasil, mas fazendo referências a outras coisas como o Reino das Fadas ou mesmo o Gato Félix, desenho animado de muito sucesso na época, nos Estados Unidos. E como ele não se preocupa em diferenciar o real da fantasia. Emília devia ser apenas uma boneca de pano, mas ela é vista claramente com vida (apenas muda), já que segue Narizinho ao Reino das Águas Claras, e escorrega três vezes ao chegar lá graças ao chão liso. E ROUBA OS ÓCULOS DA CAROCHINHA! Mas também ficara muito claro que Narizinho pegava no sono, ela tinha pegado no sono naquela ocasião! E tudo podia ser uma fantasia infantil, especialmente pela maneira como ela deixa o Reino, com Emília, ao ouvir o chamado de Tia Nastácia, quase como se estivesse acordando de um sonho…
Mas se fora um sonho, por que Tia Nastácia e Dona Benta ouviriam Emília falar?

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