Os Dois Morrem no Final (Adam Silvera)



“Olá,
aqui quem fala é a Central da Morte.
Sinto muito em lhe informar que em algum momento
ao longo das próximas 24 horas você terá um encontro
prematuro com a morte. Em nome de toda a equipe da
Central da Morte, sentimos muito a sua perda.
Aproveite este dia ao máximo, está bem?”

 

Costumo sentar-me para escrever uma review assim que eu termino de ler um livro. Ou ao menos para começar a rascunhar umas ideias, talvez escrever alguns parágrafos, mas não foi assim com “Os Dois Morrem no Final”. Ao terminar a leitura do livro de Adam Silvera, o fechei em silêncio contemplativo, emocionalmente devastado, e sabendo que eu precisava de um tempo para processar aquilo tudo. Lindíssimo, emocionante a angustiante, o livro suscita questões pertinentes a respeito da mortalidade e a possibilidade de se viver uma vida inteira em um dia, se estivermos dispostos a fazer essa escolha diariamente, e não estivermos distraídos demais com coisas que, no fundo, não importam, só porque não recebemos uma ligação da Central da Morte e achamos que “temos todo o tempo do mundo”.

“Os Dois Morrem no Final” chama a atenção, já de cara, pelo seu título inusitado – e verdadeiro, então nem adianta começar a leitura esperando alguma solução milagrosa que vá salvar a vida de Mateo e Rufus, mesmo quando nosso lado mais romântico e inocente gostaria de vê-los poder despertar no dia seguinte. O título é uma grande brincadeira, um spoiler do que você vai encontrar no fim do livro, porque, no fim das contas, não é isso o que importa de verdade. Não importa que Mateo e Rufus morram no final, mas como eles vivem até que isso aconteça. Corajoso e diferente, o título surpreendentemente atiça a nossa curiosidade e é uma ótima maneira de vender um livro com a premissa de “Os Dois Morrem no Final”: e se você soubesse que vai morrer?

No universo criado por Adam Silvera, todo mundo sabe quando chega o seu Dia Final – mas só quando o seu Dia Final chega de fato. Ninguém é informado com antecedência sobre a morte, o que eu acho que construiria uma vida cheia de paranoias, mas entre a meia-noite e as três da manhã, a Central da Morte faz ligações para todas as pessoas que vão morrer durante aquele dia. Eles não sabem a hora exata, tampouco como vai acontecer, mas eles são avisados de que têm menos de 24 horas de vida, para usar como bem entenderem… e dois garotos aparentemente saudáveis, entre 17 e 18 anos, recebem a ligação no mesmo dia: Mateo, um garoto com o pai em coma e que quase não sai do apartamento; e Rufus, que estava batendo no novo namorado babaca da sua ex-namorada.

E, em algum momento, o caminho deles vai se cruzar.

Antes de entrar em detalhes da história e elogiar a maneira incrível como Adam Silvera desenha esse universo e todas as suas peculiaridades, que vão de novos termos que são naturais no cotidiano de uma sociedade que vive com a Central da Morte fazendo ligações diárias à ressignificação de termos que também usamos, como o “velório”, ou os personagens perfeitamente carismáticos, interessantes e complexos que ele apresenta, e que sentimos que conhecemos a vida toda, eu preciso divagar um pouco, e falar sobre as reflexões que “Os Dois Morrem no Final” me provocaram – várias vezes, durante a leitura, escolhi deixar o livro de lado por alguns minutos e pensar a respeito daqueles conceitos, daqueles personagens e da minha própria vida.

Parece-me que o livro é um grande exercício filosófico, em primeiro lugar. A primeira questão que ele levanta é: o que você faria se soubesse que hoje é o seu último dia de vida? Acredito que as pessoas reagiriam de maneiras distintas, como elas reagem no livro… algumas pessoas fariam de tudo para fazer tudo o que sempre quiseram fazer e nunca fizeram; outras surtariam e talvez ficassem paralisadas pelo medo e pelas paranoias; algumas sairiam para se divertir com os amigos pela última vez; alguns fariam despedidas emocionadas com as pessoas que amam e organizariam seus próprios velórios, mesmo ainda estando vivos; outras se esconderiam de tudo e de todos, completamente sozinhos; alguns até tentariam enganar a morte e se provar uma exceção à regra.

Mas essa é a pergunta óbvia que “Os Dois Morrem no Final” suscita. Eu fiquei muito envolvido na concepção de uma sociedade que convive com a Central da Morte e o consequente aviso quando chega o seu Dia Final, e pensando no efeito que esse conceito tem sobre as pessoas que não são Terminantes… afinal de contas, além de “o que você faria se soubesse que hoje é o seu última dia de vida?”, fica a pergunta: “O que você deixaria de fazer se tivesse certeza de que hoje não é o seu último dia de vida?” O quanto não se protela, o quanto não se deixa para depois coisas importantes, coisas que gostaríamos de fazer, coisas que nos fariam felizes, só por essa pretensa segurança de que não vamos morrer? Entende quando eu digo que essa leitura é um grande exercício filosófico?

Também devo dizer, no entanto, que minha veia apaixonada por ficção científica não deixa de perceber elementos que são característicos do gênero – acrescentados propositalmente ou não. Há um quê de Philip K. Dick na concepção da Central da Morte, e eu fiquei pensando muito em “Minority Report” durante alguns trechos da leitura, especialmente nas proposições dúbias e paradoxais, que me parecem uma grande ironia de Adam Silvera, como quando descobrimos que Christian, o namorado de Lídia, a melhor amiga de Mateo, morreu pegando carona com um caminhoneiro Terminante depois de receber a ligação da Central da Morte… mas ele não teria tentado voltar para casa mais cedo e, consequentemente, pegado aquela carona se ele não tivesse recebido aquela ligação.

É um grande paradoxo em vários momentos, se pensarmos a respeito disso… quantas mortes não podem ser causadas pela Central da Morte, quando eles avisam as pessoas de que elas vão morrer? Quantas pessoas que se descobrem Terminantes não acabam se arriscando demais e morrem justamente por isso? Quantos não morrem pela afobação e urgência causada por esse conhecimento? Por exemplo, essa passagem: “Alguns meses atrás, um Terminante com uma vida triste infelizmente encontrou um Último Amigo serial killer, e foi tão trágico ler sobre aquilo”. Bem, para começo de conversa, o tal “Terminante com uma vida triste” não estaria no aplicativo Último Amigo se ele não tivesse recebido a ligação da Central da Morte, certo? É um paradoxo.

Mas tudo bem… eu adoro paradoxos.

Mateo e Rufus são os dois protagonistas de “Os Dois Morrem no Final” – e como o título está correto, são os dois adolescentes/jovens que recebem a ligação da Central da Morte e morrem no final. O livro é dividido em quatro partes e, na primeira delas, “A CENTRAL DA MORTE”, podemos conhecer um pouco mais de cada um deles separadamente… conhecemos a vida de Mateo enquanto ele se sabota e cria uma série de desculpas para não precisar sair de casa, porque, na verdade, tem medo do que vai encontrar lá fora no seu Dia Final, e conhecemos Rufus, um garoto aventureiro e completamente diferente de Mateo, que tem seu velório com os melhores amigos e a ex-namorada estragado por Peck, o garoto em quem estava batendo quando recebeu a ligação.

Embora o livro te prenda e te encha de curiosidade desde as primeiras páginas (a construção de mundo e de personagem de Adam Silvera é muito boa!), ele tem um grande salto graças ao aplicativo que dá nome à segunda parte do livro: “O ÚLTIMO AMIGO”. O Último Amigo é um app para ajudar Terminantes sozinhos a encontrar alguém para fazer-lhes companhia durante o seu Dia Final, e Mateo resolve testá-lo, já que sua mãe morreu, seu pai está em coma há algum tempo, e ele não quer contar à sua melhor amiga, Lídia, que está morrendo – e Mateo sempre foi um pouco fascinado com histórias de Terminantes, então ele sabe tudo sobre o aplicativo… menos que ele encontraria uma série de pessoas absurdamente babacas antes de encontrar um Último Amigo de verdade.

Rufus, por sua vez, não é o tipo de pessoa que você normalmente veria no Último Amigo… até porque ele tem vários amigos com quem poderia passar o seu Dia Final – sabe, se o Peck não tivesse estragado tudo e chamado a polícia para invadir seu velório! E por que não tentar uma coisa diferente? Quando Rufus vê uma pichação sobre o Último Amigo, ele resolve tentar, e é assim que Rufus e Mateo se encontram – com Rufus fazendo o primeiro contato e comentando que gostou do chapéu do Luigi que o Mateo está usando em sua foto de perfil. É impressionante como parecemos conhecer esses personagens, e como os vemos crescer e se transformar na frente dos nossos olhos, enquanto eles compartilham seu Dia Final um com o outro e com o leitor.

“Os Dois Morrem no Final” é, inegavelmente, uma leitura melancólica. Ainda assim, há tanta beleza na vivência daquelas horas que, algumas vezes, quase nos esquecemos do destino que aguarda Mateo e Rufus, e queremos viver naquele momento e naqueles minutos seguros para sempre, antes que qualquer coisa aconteça. É ótimo ver Mateo e Rufus se conhecerem, vê-los estabelecer uma relação de confiança além do receio e da desconfiança que a ligação da Central da Morte inevitavelmente causa, e ver como os sentimentos nascem e se intensificam de maneira tão verdadeira, nos provando que mais do que o tempo, o que importa é a qualidade e a intensidade com que se conhece alguém. Mateo e Rufus começam o livro como estranhos… mas, em menos de um dia, eles deixam de ser isso um para o outro.

Mas falemos da BELEZA que é esse livro. É, sim, melancólico, é, sim, o último dia de vida de duas pessoas que amamos depressa, mas eles compartilham cada momento lindo de aquecer o coração, mesmo quando parece que as coisas vão dar errado, como quando Mateo ouve uma conversa de Rufus com Aimee no telefone e descobre que os amigos dele foram para a cadeia e, sem pensar, foge, sentindo que não conhece Rufus e que ele pode estar se colocando em perigo, mas Rufus o segue de bicicleta, desesperado (“Seu olhar encontra o meu, e quando percebo que não está furioso, e sim assustado, tenho certeza absoluta de que ele não será o motivo do meu fim”), porque não pode perder o Mateo, seu Último Amigo. Senti tanta coisa naquela sequência.

Até perdi o fôlego.

Um dos momentos mais perfeitos acontece enquanto Mateo e Rufus estão indo ao cemitério para visitar a mãe de Mateo, e um apagão no metrô faz com que Mateo tenha um ataque de pânico, e o Rufus é perfeitamente atencioso e cuidadoso com ele, e o distrai mandando que ele construa alguma coisa com o lego que comprou para ele, e o pergunta sobre os lugares aos quais ele gostaria de ir… Mateo nem percebe o que Rufus está fazendo, mas ele começa a falar e a construir um santuário, e funciona tão bem que logo ele não está mais tão desesperado quanto antes, graças a Rufus. Ele consegue até tirar uma soneca, o que Rufus acha tão encantador que ele precisa tirar uma foto e captar a sua expressão sonhadora, antes de Mateo ter um pesadelo, ao que Rufus responde segurando seu braço para salvá-lo.

A dinâmica e a química de Mateo e Rufus funciona perfeitamente – e ambos se salvam, de certa maneira. Rufus é um amor e, sem grandes planos para o dia, lhe parece incrível acompanhar Mateo em suas missões, algo que talvez Mateo nem estivesse fazendo se continuasse sozinho, porque ele estava apavorado frente à perspectiva de deixar o apartamento, para começo de conversa, e Rufus precisou ir buscá-lo lá, para que ele pudesse ir visitar o pai no hospital e falar com ele uma última vez, visitar a melhor amiga e se despedir dela, sem contar a verdade sobre estar morrendo, e visitar a mãe no cemitério (uma passagem fortíssima com direito a uma conversa inspirada sobre vida após a morte e destino). Mateo, por sua vez, ajuda Rufus a “se reencontrar”.

E Rufus está verdadeiramente encantado.

Na terceira parte do livro, “O COMEÇO”, o protagonismo LGBTQIA+ fica mais evidente do que nunca, embora a relação de Mateo e Rufus seja construída aos poucos desde o início do livro. Sempre soubemos que Rufus era bissexual, mas Mateo resolveu deixar em branco a sua orientação sexual no perfil do Último Amigo – ainda assim, Rufus não pode deixar de se perguntar, conforme o dia passa e ele sente que existe uma conexão impressionante entre eles. E cada detalhe dessa conexão é tão palpável e tão verdadeira que é delicioso de se ler, porque eles podem ter vivido apenas um dia (ou menos do que isso) ao lado um do outro, mas a intensidade do Dia Final faz com que tudo seja muito mais significativo e muito mais real: eles viveram uma vida inteira.

Os dois compartilham uma conversa interessante sobre amor, crushes e relacionamentos quando visitam uma livraria, e Rufus quase pergunta algo que “está querendo perguntar há tempos”, mas eles são distraídos por uma explosão em uma academia (de um Terminante suicida que explode uma bomba), e por pouco saem com vida… naquele momento, quando veem a possibilidade de morrer em uma explosão, eles sentem que o aviso da Central da Morte é real, e que eles não estão preparados. Angustiado, Rufus diz a Mateo que precisa pedalar, porque é o que ele faz quando está se sentindo mal, e Mateo não quer subir na sua bicicleta porque acha que ela pode ser a causa da morte deles, mas Rufus pede que ele confie nele: precisa pedalar, mas não quer se separar dele.

Lindíssima a cena do Rufus pedalando e o Mateo se libertando.

Acho delicioso ver o Rufus apaixonado por Mateo. Rufus é exatamente o tipo de garoto por quem o Mateo se apaixonaria, e todos esperariam que Mateo se apaixonasse por ele: bonito, aventureiro e com coragem de fazer tudo o que ele gostaria de fazer, além de ser um parceiro incrível que lhe dá forças quando ele não tem nenhuma; mas Mateo tem tanta vida dentro dele, mesmo que seja seu Dia Final e ele seja um garoto reservado, um pouco medroso e que se arrepende de não ter vivido de verdade, que o fascínio que ele causa em Rufus é irreversível. Rufus sabe, no fundo, que seus sentimentos estão sendo correspondidos, mas ele não quer “roubar esse momento de Mateo”… Mateo é quem precisa dar o primeiro passo, e Rufus vai esperar.

Rufus ama o nome de Mateo e o repete em voz alta o tempo todo, e odeia o fato de que vai morrer naquele dia, porque ele só conheceu Mateo agora e isso parece injusto… e a eminente finitude do que estão vivendo os assombra de forma melancólica. Os dois prometem não morrer antes do outro, o que eles não podem garantir, é claro, e jogam um jogo doloroso em outra viagem de metrô, na qual eles começam a inventar histórias sobre eles, histórias que nunca viveram e nunca viverão… memórias de um passado que nunca existiu e projeções de um futuro que nunca vai existir. Eles se divertem, naqueles minutos de brincadeira, mas é profundamente triste, porque eles são criativos demais e, infelizmente, percebem que havia tanto que podiam viver juntos.

Um dos elementos mais legais criados por Adam Silvera para “Os Dois Morrem no Final” é a Arena de Viagens, um lugar que promete experiências ao redor do mundo, especialmente para Terminantes que não terão tempo e/ou dinheiro de conhecer aqueles lugares de verdade… e é aqui que ganhamos uma das minhas sequências favoritas do livro (daquelas de me deixar realmente surtando de felicidade, de verdade!). Dessa vez, Rufus e Mateo têm a companhia de Lídia, para quem Mateo resolve ligar, arrependido de não ter contado a verdade (o que ela já descobriu graças às suas atitudes mais cedo, a uma hora dessas), e ela corre para a Arena de Viagens para estar com o seu melhor amigo no seu Dia Final – como deveria ser, e agora ele sabe.

Quando o trio resolve explorar uma “Floresta Tropical” e um salto na cachoeira na Arena de Viagens, curiosamente Mateo é o mais corajoso e decidido dos três, encorajando os outros a virem com ele – inclusive convencendo Rufus a saltar, dizendo que acha que isso vai ser bom para ele, já que ele tem certo receio de água desde que sua família inteira morreu afogada quando o carro deles caiu no rio. Mateo evita olhar para Rufus quando ele tira a roupa (o que Rufus percebe a acha particularmente divertido), mas Rufus segura a sua mão e entrelaça os dedos antes de saltar, e eles saltam assim: juntos. O que é uma simbologia e tanto. É um momento tão bonito quando Rufus vê a expressão de Mateo e vê como ele está bem e leve, e o abraça.

Que sequência perfeita!

Para os leitores, Rufus faz uma pequena confissão que me deixou dando pulinhos de alegria no meio de tanta tristeza: ele espera que, ao segurar a mão de Mateo daquele jeito para eles saltarem juntos, Mateo tenha entendido, caso ainda restasse alguma dúvida… e isso nos conduz à sequência inicial de “O FIM”, a última parte do livro, quando Rufus, Mateo e Lídia vão ao Cemitério do Clint, uma boate para Terminantes e acompanhantes, e vemos o Mateo mais solto do que nunca – porque tudo foi se construindo para chegar àquele momento. Enquanto as horas passavam, presenciamos enquanto o Mateo retraído do início do livro se tornava aquela pessoa ainda mais fascinante, solta e incrível que vemos agora. Que canta uma música de 8 minutos na frente de todo mundo

Que vive. Que se joga. Que “vai com tudo”.

A sequência de Mateo e Rufus cantando no Cemitério do Clint e o que acontece depois, quando Mateo segura a mão de Rufus e o puxa para fora do palco é lindíssima – e sabendo que “Os Dois Morrem no Final” vai ser adaptado para uma série, mal posso esperar para assistir a isso. Assim como Rufus estava esperando há muito tempo (!), Mateo finalmente toma a iniciativa… ele puxa Rufus para fora do palco, olha nos seus olhos e o beija pela primeira vez, e é O BEIJO, repleto de tanto sentimento, de tanta verdade, de tanta espera e expectativa… Rufus o beija de volta, feliz, com direito a um comentário que colocou um sorriso ainda maior no meu rosto: “Finalmente! Por que demorou tanto?” Sentia que Mateo e Rufus não poderiam ser mais fofos do que naquele momento.

Mas eles sempre podiam.

O romance de Mateo e Rufus se desenrola de maneira tão natural e apaixonante que torcemos avidamente por eles, e celebramos cada pequena vitória. E, no meio da pista de dança do Cemitério do Clint, e durante uma música agitada, Rufus pede uma última dança, uma dança lenta com Mateo… e os dois dançam com as testas encostadas uma na outra, em um momento mágico e especial no qual eles falam sobre tudo o que gostariam de fazer ainda um com o outro. Eles queriam e mereciam mais tempo. Eles queriam uma história de verdade, com tempo para escrevê-la juntos. Assim, o livro brinca com sentimentos paradoxais, porque em parte estamos realizados, felizes e emocionados, mas parte de nós sabe o que ainda precisa acontecer e, por isso, estamos sofrendo.

E quando Peck chega com a sua gangue no Cemitério do Clint, eu juro que prendi a respiração e tive medo. Eu sabia que o Rufus ia morrer naquele dia – mas não podia ser por causa do idiota do Peck, com um tiro. Felizmente, não é, mas Peck consegue estragar o dia de Rufus pela segunda vez, porque ele e Mateo eventualmente precisam escapar sozinhos, deixando Lídia e os Plutões, os amigos de Rufus, para trás, já que não podem mais se dar ao luxo de colocá-los em perigo, agora que o dia está acabando… mas também podemos ver Mateo ter coragem de dar um soco em Peck, algo que o Mateo do começo do dia jamais faria, e vemos Mateo e Rufus escapar da morte pela segunda vez no seu Dia Final, o que causa uma sensação estranha de confiança e invencibilidade.

Ou não.

Os dois saem do Cemitério do Clint afoitos, sem ar, e querendo sentir que estão em segurança. É diferente não ter medo de viver, que é o que Rufus incentivou Mateo a fazer durante todo o dia, e ser imprudente e ficar andando pela rua com alguém atrás de Rufus disposto a matá-lo em seu Dia Final. Então, Mateo quer ir para casa, mas quer que Rufus vá com ele e, dessa vez, quer que ele entre e conheça o lugar que o manteve vivo esse tempo todo… ou, como Rufus gosta de dizer, o lugar onde Mateo esteve se escondendo dele durante tanto tempo. “Me leva para casa, Mateo”. E, em casa, os dois compartilham uma série de momentos lindíssimos, com o Rufus tirando fotos de Mateo com o chapéu do Luigi ou pulando em cima da cama – aquele Mateo incrível e irreconhecível.

Gosto muito de como os capítulos, embora predominantemente narrados por Mateo ou Rufus, também têm a chance de mostrar pontos de vistas de outros personagens, Terminantes ou não, e Adam Silvera brinca o tempo todo com conexões entre as histórias, e isso é muito bacana e enriquecedor para a experiência de leitura de “Os Dois Morrem no Final”. Mateo e Rufus esbarram na rua com o cara que explode a bomba na academia, por exemplo. Deirdre, a funcionária do Faça Acontecer, pensa em se matar embora não tenha recebido a ligação da Central da Morte, mas acaba mudando de ideia ao ver “dois meninos de bicicleta, vivendo”. É quase lírica a maneira como as histórias vão se cruzando, e é bonito e assustador pensar no quanto influenciamos na vida de outras pessoas, mesmo sem perceber.

Mesmo sem querer.

Conhecemos Zoe, por exemplo, uma garota cuja primeira mensagem que mandou no Último Amigo foi para “um garoto chamado Mateo”, mas ele nunca respondeu, e agora eles “se esbarram”, sem saber, quando ele está saindo do metrô com Rufus e ela está entrando no mesmo metrô com Gabriella, sua Última Amiga, e são elas que encontram um livro surpresa que Mateo deixou propositalmente para trás no banco do metrô… e o diálogo de Zoe com Gabriella nos revela, também, que Gabriella é uma grafiteira que está espalhando propagandas do aplicativo Último Amigo pela cidade, e portanto é a responsável pelo logo que Rufus vira no McDonald’s e que o fizera baixar o aplicativo… ou quando um dos caras da gangue de Peck hesita em bater em Mateo porque Mateo já o ajudou no passado.

São pequenos detalhes tão incríveis!

Sabemos, enquanto acompanhamos Mateo e Rufus em casa, que a hora deles está chegando – de um jeito ou de outro. E, inevitavelmente, o livro assume um tom ainda mais melancólico, embora estivéssemos de luto por eles desde o começo. Os conhecer e saber tudo o que eles estão perdendo, no entanto, torna tudo mais doloroso, porque eles mereciam viver. É linda a cena de Mateo cantando “Your Song” para Rufus (!), e o sorriso de Rufus com lágrimas nos olhos, emocionado ao dizer que Mateo “estava se escondendo dele”, ou o Mateo dizendo a Rufus que “o teria amado se eles tivessem mais tempo”, ou que “talvez já o ame”, e o Rufus retribui dizendo que também o ama. E é verdade: eles se amam. Intensa, verdadeira, profunda e inegavelmente.

E eu amo os dois.

Então, Mateo morre antes de Rufus. E é curioso o sentimento que o livro causa. Comprei o livro sabendo que os dois morriam no final, li o livro todo sabendo que os dois morriam no final, mas, ainda assim, parece que nada me preparou de fato para aquele momento. Incrédulo e desejando que ainda não tivesse acontecido, eu estava destruído, arrasado e sofrendo quando Mateo morreu, porque tudo parecia tão injusto, tão cruel e tão tolo… em questão de minutos, Mateo se levanta da cama, de onde ele e Rufus prometeram não sair porque estavam seguros ali, e morre acendendo o fogão que estava com problema, e Rufus está sozinho. Impossível não pensar nos “e se”, mas é inevitável: aconteceu, e Mateo não cumpriu sua promessa de não morrer antes de Rufus.

A dor de Rufus é palpável e sufocante, como a fumaça preta que toma conta do apartamento e manda Rufus para o hospital, enquanto Mateo é retirado do local em um saco preto e Rufus quer que alguém faça alguma coisa. Rufus é a representação exata do leitor naquele momento: em negação, com o coração doendo, sofrendo com a dor e a crueldade daquele momento. Parece tudo tão cru e tão brutal. Mas Rufus entrega momentos de beleza tristíssimos depois da morte de Mateo, como quando liga para Lídia para contar, ou quando visita o pai de Mateo, como Mateo queria fazer mais uma vez, e escreve um recado para ele, para quando ele acordar, falando sobre como Mateo viveu seu Dia Final, e como ele fotografou tudo e ele pode ver no seu Instagram, se quiser…

É um ato tão singelo, tão significativo e tão bonito.

Mas meu coração estava despedaçado, profundamente arrasado. Agora totalmente entregue à tristeza, “Os Dois Morrem no Final” termina com Rufus deixando que a tristeza o consuma, sabendo que a sua morte também vai chegar em alguns minutos, e permitindo sentir toda a dor de ter perdido o garoto que lhe trouxe de volta à vida, que permitiu que ele se encontrasse e que ele amou em seu último dia de vida… o garoto com quem ele poderia ter sido feliz para o resto da vida, mas com quem foi feliz em uma vida inteira em um dia. Rufus está distraído, cansado física e emocionalmente, envolvido no vídeo de Mateo cantando “Your Song”, que ele escuta em loop nos seus fones de ouvido, e então ele morre atravessando a rua sem um braço para puxá-lo para trás.

Sofri. Mas vivi. Vivi intensamente cada página de “Os Dois Morrem no Final”. Vivi cada despedida, vivi cada sentimento, vivi cada descoberta bonita, cada amadurecimento, cada detalhe de uma vida inteira que Mateo e Rufus resumiram em um único dia porque o destino não permitiu que eles vivessem além dele. Adam Silvera entrega um conto bonito e doloroso, mas de uma sensibilidade ímpar e uma sinceridade apaixonante, enquanto nos faz refletir sobre a mortalidade, mas celebra a vida, porque a verdade é que também vamos morrer no final, e não é isso o que importa, é? O que importa é o que vamos fazer até chegar lá. Talvez seja a hora de deixar alguns medos de lado e se aventurar a fazer aquilo que queremos fazer, aquilo que nos faz feliz.

Aquilo que de fato nos torna vivos.

 

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