Hoje é dia de Maria, Segunda Jornada – Episódio 5: O Retorno

“Era uma vez, uma menina chamada Maria”

BELEZA E POESIA. “Hoje é dia de Maria” é uma das produções mais bonitas da teledramaturgia brasileira, trazendo uma linguagem poética e teatral para a televisão na forma de uma minissérie em duas “jornadas”: a primeira, com 8 episódios, contando as andanças de Maria pelo mundo, suas batalhas contra Asmodeu e a sua infância roubada; a segunda, com 5 episódios, mostrando Maria em um mundo completamente novo, o da cidade grande, de onde ela não sabe escapar e onde ela conhece muita maldade. Com música, melancolia e sensibilidade, “Hoje é dia de Maria” é uma produção emocionante e memorável e com um quê de revolucionária, por ousar adaptar elementos do teatro e do texto lírico para uma nova mídia. É um verdadeiro espetáculo, uma obra-prima.

Confesso que eu tenho um carinho maior pela primeira jornada de Maria, mas revisitar essa segunda jornada também me despertou sentimentos de admiração e surpresa, enquanto Maria era confrontada com horrores da nossa sociedade, como a descartabilidade da vida humana e a guerra… em “O Retorno”, o último episódio de “Hoje é dia de Maria”, Maria está se despedindo de uma cidade moribunda, destruída pela guerra que levou tantas vidas inocentes, e vemos dois personagens que foram marcadas pela passagem da garota: a Dona Boneca, que foi valorizada talvez pela primeira vez na vida, e que vai sempre lembrar-se dela e sentir sua falta; e um soldado que a ouviu cantar, teve seu coração tocado e tentou desertar, mas foi brutalmente assassinado pelos próprios colegas.

Antes de partir, Maria ainda reencontra o Dom Chico Chicote, que foi tentado por Asmodeia a se jogar no Mar do Esquecimento no episódio anterior, após a morte de Rosicler, e que achamos que tínhamos perdido para sempre. É um alívio muito grande ver Maria salvar a vida de Dom Chico Chicote daquele fim trágico, ainda que o Mar do Esquecimento tenha apagado as palavras de seu livro e ele não se lembre nem de Maria, nem de Rosicler, nem dele mesmo… ainda assim, Dom Chico Chicote decide acompanhar Maria para fora daquela cidade destruída, e a garota está contente por ter de volta o seu amigo e companheiro ao seu lado. E, juntos, eles deixam para trás a tristeza da guerra e retornam para um cenário como aqueles da primeira jornada de Maria.

Maria, então, começa a fazer o seu caminho de volta, reconhecendo lugares e tentando ajudar o seu amigo Dom Chico Chicote a se lembrar de quem era. Maria fala sobre suas aventuras, sobre os seus sonhos, sobre o seu amor, e ganhamos cenas emocionantes protagonizadas pela dupla, como quando o nome de Rosicler é a única palavra que aparece nas páginas outrora em branco do livro em sua cabeça, ou quando Maria usa um desejo que ganhou de um cavaleiro, que ela podia egoistamente usar para voltar para casa, para dar ao amigo o que ele sempre quis: o poder de voar. Lindíssima a cena de Dom Chico Chicote voando o mais alto que pode (e quase irônico, pensando que seu grande sonho era voar e o personagem do Rodrigo Santoro na primeira jornada era um pássaro).

O voo de Dom Chico Chicote é, no entanto, o seu último feito em vida… eventualmente, ele despenca de volta na Terra e, dessa vez, não há Maria que possa salvá-lo. Melancólico e sofrido, esse ainda é um fim mais digno ao personagem do que ele ser levado para sempre pelas águas do Mar do Esquecimento… e, assim como o Pai de Maria na primeira jornada reencontra Conceição no momento de sua morte, Dom Chico Chicote é recebido de braços abertos por sua amada Rosicler, que estivera esperando por ele. Finalmente reunidos, os dois partem juntos dessa vida, enquanto Maria espanta pássaros carniceiros do corpo de seu amigo o quanto pode, mas não pode por muito tempo. Em algum momento, a própria Maria cai em um sono profundo, e “dorme por 100 anos”.

Quando Maria desperta, ela está sozinha e talvez rumando de volta para casa… incerta do que encontrará quando chegar lá, porque Asmodeu continua em seu encalço, e ele parece bastante certo de que, dessa vez, ele venceu, e tememos que ela retorne para aquela versão da realidade da qual ela fugiu no início de “Hoje é dia de Maria”, quando o pai era casado com a Madrasta cruel. Toda a reta final dessa segunda jornada é profundamente melancólica e com um quê de nostalgia, porque nos leva de volta a momentos rápidos e memoráveis da primeira jornada de Maria: Maria sendo seguida atenciosamente pelo pássaro que é quase seu anjo da guarda; Maria fazendo café para o pai no sítio da família; Maria sendo abraçada pela mãe quando retorna para casa…

E, enquanto dá seus passos finais rumo a um sítio que parece não existir mais (afinal de contas, Maria dormiu por 100 anos), Maria encontra uma última companhia bondosa que a encoraja a seguir em frente: a Senhora dos Dois Mundos, interpretada por Laura Cardoso – que também é a avó de Maria. Assim, “Hoje é dia de Maria” vai nos revelando a natureza dessa segunda jornada da personagem, que ainda está no seu sítio, mas sofrendo com uma febre ferrenha que se recusa a baixar, enquanto chama pelo pai e pela avó, fala sobre tudo o que está vivendo quase como um delírio, e o Pai implora para que “ela não vá embora”. Lembro-me que essa é uma sequência que ficou muito marcada em mim quando assisti a “Hoje é dia de Maria” pela primeira vez, em 2005.

E que tem o mesmo impacto hoje.

Lindíssimo. Verdadeiramente lindíssimo. Mais do que um “delírio” de Maria causado pela febre, toda essa nova jornada é a grande luta de Maria, que está entre a vida e a morte, e o que a leva de volta é a sua fé, a sua coragem e a sua determinação. Há muita beleza e poesia envolvida na maneira lúdica como Maria desafia o Cavaleiro da Noite e consegue mais um desejo, que ela finalmente usa para retornar para casa, deixando para trás tudo de mal que lhe aconteceu… e, ao fazê-lo, a febre começa a ceder, sob os cuidados amorosos do pai e da avó, que sabiam que já tinham feito tudo o que podiam e que o último passo deveria ser dado por Maria. É com alívio que vemos Maria despertar, ainda fraca, mas bem, de volta no seu sítio, de volta na sua própria cama.

Que grande obra é “Hoje é dia de Maria”.

 

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