O Homem dos Sonhos (Dream Scenario, 2023)

“Have you been dreaming about me?”

Escrito e dirigido por Kristoffer Borgli e protagonizado por Nicolas Cage, “O Homem dos Sonhos” é uma produção peculiar da A24, que vem entregando projetos fascinantes, curiosos e diferentes que têm chamado cada vez mais a atenção do público, especialmente depois do sucesso estrondoso e merecido de “Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo”, de 2022. Confesso que, atualmente, ver o nome da A24 é uma excelente propaganda para o filme na minha opinião. E, aqui, temos em mãos uma obra audaciosa, criativa e desconcertante, que nos enche de perguntas mais do que de respostas, e acaba se tornando uma experiência estendida quando se termina o filme e permanecemos pensativos por alguns minutos, tentando colocar as informações em ordem.

E há muito que se pensar!

A premissa do filme é extremamente curiosa: Nicolas Cage interpreta Paul Matthews, um professor de faculdade experiente, mas que nunca viveu de fato a vida que imaginou, e que começa a aparecer misteriosamente nos sonhos de outras pessoas… e de cada vez mais pessoas. Ele parece ser um espectador onipresente no subconsciente alheio, assistindo enquanto coisas acontecem e ele nunca faz algo de fato – é isso o que ele descobre ouvindo os relatos da sua própria filha, de uma ex-namorada que o encontra casualmente no teatro depois de uma peça e de uma sala cheia de alunos curiosos que estão ali apenas para ver “o homem que aparece em seus sonhos”. E, então, Paul Matthews se torna uma espécie de “celebridade”: famoso, reconhecido, cheio de possibilidades…

O que acaba não durando muito, na verdade. A ascensão acelerada de Paul Matthews é diretamente proporcional ao seu cancelamento repentino quando a natureza dos sonhos começa a mudar e as pessoas passam a temê-lo. Se antes ele era apenas um espectador passivo que não fazia nada nos sonhos das outras pessoas, só estava lá, sua versão nos sonhos começa a atacar essas pessoas, sempre de maneira violenta e brutal, de modo que ele acaba se tornando uma figura temida no mundo real – ainda que ele não tenha feito nada e não possa ser culpado pelo que está no subconsciente de outras pessoas. É absurdo e desconfortável ver o tratamento pelo qual ele passa: as salas vazias, as pessoas fugindo, o carro pintado, a expulsão de um restaurante…

Até que as coisas escalem de maneira perigosa e, então, os sonhos “subitamente parem”.

E uma nova tecnologia seja lançada.

O filme é riquíssimo, e eu acho que ele explora bem a estranheza e as peculiaridades de sua premissa, causando no espectador sensações que nem sempre são inteiramente racionais. Eu, particularmente, fiquei muito incomodado em vários momentos, e eu acho que o Nicolas Cage entrega um trabalho de atuação muito bom, curiosamente. Parece-me que “O Homem dos Sonhos”, mais do que ter a pretensão de ser inteiramente entendido (embora deixe pistas que podem ser dissecadas, e eu tentarei fazer um pouco disso mais à frente), quer convidar o seu espectador a pensar… o filme acaba se tornando uma competente alegoria à fama rápida alcançada com os fenômenos virais, por exemplo, e uma leitura cruel a respeito da cultura do cancelamento.

Toda a fama que Paul Matthews conquista na primeira parte do filme acontece simplesmente porque “ele estava lá” nos sonhos das pessoas. De alguma maneira, ele “viralizou no subconsciente alheio” sem de fato fazer nada, e isso o alçou à fama e a possibilidades que ele nunca tivera, e que talvez nem tenham a ver com ele, mas que ele quer aproveitar para, quem sabe, chegar àquilo que ele de fato sempre quis: escrever, lançar um livro e ser reconhecido e respeitado dentro da sua área. Mas se não foi isso o que “o tornou viral”, será que é realmente isso o que as pessoas querem ver? E, se não, ele está disposto a entregar mais daquilo que o deixou famoso? Quais são os perigos de você se perder e perder o que tinha quando você faz isso?

Já o cancelamento de Paul Matthews abrange outra faceta dessa realidade virtual na qual a sociedade como um todo vive atualmente. Paul Matthews é julgado, condenado e excluído por coisas que ele nunca fez, apenas porque as pessoas “imaginam que ele poderia fazer”, com base no que foi criado em seus próprios subconscientes… e ainda que isso se possa entender racionalmente, a imagem de Paul Matthews já foi enraizada na psique das pessoas como algo “perigoso” e “nojento”. Fico pensando em boatos e notícias falsas que às vezes são deliberadamente forjadas para se acabar com alguém, que é julgado por isso independente de ser verdade ou não, e então, quando a verdade vem à tona, já é tarde demais para “reverter” aquela imagem negativa que já tomou o imaginário popular.

São muitas camadas!

E também acho que o filme abre portas para especulações, talvez, de um aspecto mais próximo à ficção científica… pouco depois do “escândalo” de Paul Matthews, “O Homem dos Sonhos” exibe uma propaganda de uma nova tecnologia que visa “controlar”, de certa maneira, os sonhos das pessoas… através de uma pulseira, você pode acessar o subconsciente de outra pessoa durante o sono e aparecer no sonho de alguém, e alguns “influencers” também aparecerão em seus sonhos tentando vender coisas – é quase irônica a maneira como essa sequência parece descolada do restante do filme, mas há um quê de deboche a la “Black Mirror”, e, assim como em “Black Mirror”, há um quê assustador de realidade: é justamente o que as empresas tentariam fazer com essa tecnologia, não?

Mas tudo isso me deixa extremamente pensativo em relação à proposta do filme. Em nenhum momento fica muito claro e/ou explicado como foi possível que Paul Matthews “entrasse” nos sonhos de outras pessoas. Ainda assim, essa “habilidade” FOI, sim, visada por grandes empresas que queriam utilizá-la para vender produtos (a Sprite querendo fazer com que as pessoas sonhassem com Sprite e quisessem comprá-la!), e a tal pulseira, ao que tudo indica, começou a ser comercializada pouco tempo depois do “escândalo” e dos sonhos chegarem ao fim, o que automaticamente quer dizer que elas estavam em processo de pesquisa e produção enquanto tudo aquilo estava acontecendo com Paul Matthews… e, portanto, ele pode ter sido uma cobaia?

Afinal de contas, tudo o que aconteceu com ele foi surreal, mas é uma propaganda excelente para a pulseira do sono e, também, a prova de que ela funcionaria… o fato de Paul Matthews aparecer nos sonhos de todos o deixou famoso, comentado, conhecido; o fato de aquela garota transar com Paul Matthews em seus sonhos fez com que ela quisesse experimentar na vida real; o fato de Paul Matthews ter atitudes violentas e assustadoras nos sonhos transformados em pesadelos manipulou a opinião pública a seu respeito, o tornando uma figura assustadora e temida. Troque isso, agora, por produtos. A aparição de produtos no subconsciente das pessoas os tornariam igualmente conhecidos… e lá, na vulnerabilidade do sono, é o melhor lugar para se plantar uma ideia, para fazer com que as pessoas acreditassem no que a empresa quisesse que elas acreditassem a respeito de seu produto, e quisessem provar.

É dessa maneira perversa que o Capital funciona, não é?

Interessantíssimo!

 

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