PINÓQUIO por Guillermo del Toro (Guillermo del Toro’s PINOCCHIO, 2022)

“The one thing that makes life precious, you see, is how brief it is”

Guillermo del Toro tem a habilidade impressionante de entregar belíssimas histórias, com toques de emoção, de melancolia e de sombras – o diretor é o responsável, por exemplo, por um dos meus filmes favoritos no mundo, “O Labirinto do Fauno”. Por isso, quando uma versão em stop-motion de Guillermo del Toro para “Pinóquio” foi anunciada, eu tinha certeza que teríamos um grande e poderoso filme em mãos. Com muito cuidado e sensibilidade, mas, ao mesmo tempo, com desinibição e coragem, Guillermo del Toro entrega uma adaptação do livro de Carlo Collodi, de 1883, que explora a complexidade de uma história que envolve, como o próprio Grilo Falante diz, amor e luto em um período marcado pela guerra e pela ascensão do fascismo.

“As Aventuras de Pinóquio” é uma das histórias mais famosas da literatura italiana, e rendeu todo tipo de adaptação desde a sua primeira publicação – dentre elas, a animação da Disney, que é, possivelmente, a versão mais famosa da história… ao retomar o livro original, no entanto, Guillermo del Toro tira o excesso de cor e alegria que havia sido colocado sobre a história, para entregar uma versão mais crua e sincera, que não teme a melancolia inerente à história e às discussões por ela levantadas. “PINÓQUIO por Guillermo del Toro” me fez pensar muito em uma outra história com fortes influências de “Pinóquio”, e que é uma das minhas ficções científicas favoritas de todos os tempos (na verdade, um dos meus filmes favoritos, em qualquer gênero): “A.I. Inteligência Artificial”.

Encontramos, aqui, um Geppetto brutalmente destruído pela perda do filho, Carlo, resultado dos horrores da Primeira Guerra Mundial. Gosto de como o filme retorna, durante alguns minutos importantíssimos, para a época em que Carlo ainda estava vivo, para explorar a relação de pai e filho dele com Geppetto – e Geppetto era um pai apaixonado e cuidadoso que faria de tudo pelo filho. Sua morte por uma bomba que é jogada sobre a igreja da cidade é dolorosa, e há uma crítica no fato de que a cidade nem era alvo da guerra, mas apenas um lugar onde bombas foram despejadas para “aliviar a carga dos aviões” enquanto eles retornavam para a base… é a representação mais perfeita da guerra como esse descaso à vida humana. E Geppetto paga por isso.

Esse stop-motion de “Pinóquio” é, de fato, uma obra-prima que deve receber bastante reconhecimento nas premiações futuras, e o valor dessa adaptação está presente na qualidade e no cuidado da técnica utilizada, na trilha sonora perfeita, no elenco de vozes competente e inspirado, e na qualidade presente em pequenos detalhes que enriquecem a história e a tornam o mais real que ela poderia ser… toda a sequência de Geppetto sofrendo a morte do filho por meses/anos, chorando e bebendo em frente ao seu túmulo, enquanto um pinheiro nascia atrás dele, é uma das sequências mais brilhantes e significativas do cinema. E é daquele pinheiro que Geppetto resolve “fazer seu filho de volta”, como um boneco de madeira, sem imaginar que ele de fato ganharia vida.

Há muita magia na história de “Pinóquio”, mas é uma magia a favor da simbologia e das metáforas usadas para se contar essa história de amor e luto… Pinóquio, um boneco de madeira que ganha vida graças aos espíritos da floresta na forma de uma fada azul, se torna o mais novo filho de Geppetto – e ele tem que aprender a ser seu filho, ao mesmo tempo em que Geppetto precisa aprender a ser um pai novamente, depois de ter se perdido em sua dor durante tanto tempo… e, para ajudar a ambos em uma jornada difícil e cheia de altos e baixos, o Grilo Falante, um escritor que fizera sua morada no pinheiro derrubado por Geppetto para fazer Pinóquio, pode ser uma espécie de conselheiro importante. A voz da consciência de Pinóquio, se assim quiser chamar.

Uma das minhas cenas favoritas em “Pinóquio” acontece na igreja, em um dos primeiros dias de vida de Pinóquio, quando ele acompanha o pai, que precisa terminar um trabalho que abandonara desde a morte de Carlo e consertar a imagem de Jesus crucificado que fica atrás do altar, e então Pinóquio se lembra da primeira vez em que esteve ali e enuncia uma dúvida extremamente pertinente. Foi doloroso ouvir o Pinóquio, no auge de sua pureza e inocência, perguntar a Geppetto por que todo mundo gostava tanto daquela estátua e cantava para ele, se ele é feito de madeira, assim como ele, mas ninguém gosta dele? A inteligência de diálogos como esse, trazendo toda uma discussão sobre o preconceito contra todos que, de alguma forma, são diferentes.

Conhecemos a história de Pinóquio, e o filme explora as desventuras do boneco geradas pela sua ingenuidade e pelo seu desejo de “deixar o pai orgulhoso”, em conjunto a uma representação da guerra e da ganância em diversos sentidos, e tudo o que ela traz… em primeiro plano, no entanto, a própria relação familiar de Pinóquio e Geppetto e os desencontros gerados pelo que o Grilo Falante chama de “pais e filhos imperfeitos”. Geppetto chama Pinóquio de um “fardo”, por exemplo, mas é no calor do momento e ele não quer realmente dizer aquilo, mas quando ele acorda pronto para pedir desculpas ao filho e conversar com ele, no dia seguinte, ele descobre que Pinóquio já foi embora, determinado a “não ser um fardo para o pai”. E quantas vezes isso não acontece de verdade?

O filme explora toda a trajetória de Pinóquio com um show de marionetes que está tentando impressionar Mussolini (a rebeldia debochada de Pinóquio é sensacional aqui), mas eu gostei demais de toda a sequência que leva Pinóquio até a guerra, onde crianças são ensinadas a “não serem covardes” e a “lutar pelo seu país”, em uma luta sem propósito e sem respeito pela vida, onde ele inusitadamente estabelece uma amizade sincera e bonita com Candlewick, um garoto que, assim como Pinóquio, está apavorado. É triste e devastador acompanhar ao treinamento deles, mas também nos aquece o coração, mesmo que por poucos minutos, ver a maneira como Pinóquio e Candlewick riem juntos em uma situação na qual eles só precisavam daquilo: o sorriso de um amigo.

Há muito carisma no personagem de Pinóquio – algo que eu julgo essencial quando se quer contar essa história. Pinóquio é um personagem complexo e difícil de se adaptar, na verdade, porque é muito fácil cair na armadilha de um “garoto rebelde” ou de um “garoto bobo”, e Guillermo del Toro consegue escapar de ambos os estereótipos e entregar um personagem humano e cheio de camadas, que vai além do desprezo pelas regras, mas que também não é controlado por rebelde ou ingenuidade puramente… Pinóquio, com seu peito aparentemente oco, é conduzido em todos os momentos pelos seus sentimentos, por suas emoções, tão sinceras, tão humanas e tão reais quanto as de qualquer “garoto de verdade”. Uma verdadeira conquista!

Outro elemento importante e inteligente dessa adaptação de “Pinóquio” é o fato de, como um boneco de madeira, Pinóquio não poder de verdade morrer. Em mais de uma ocasião durante o filme, ele passa por situações que seriam a morte de um “garoto de carne e osso”, mas Pinóquio passa um tempinho na terra dos mortos e retorna, saltitante, sorridente e feliz… aos poucos, no entanto, Pinóquio vai entendendo que a mortalidade e a brevidade da vida é que a tornam tão significativa, porque a maior alegria da vida é poder passar tempo com aqueles que você ama – e, mais cedo ou mais tarde, Geppetto e todos seus amigos terão partido e ele ficará para trás. E quanto mais imprudente for, mais perto ele estará disso, porque cada vez que vai à terra dos mortos, ele passa um pouco mais de tempo lá.

Eventualmente, Pinóquio abre mão de sua imortalidade, mostrando todo seu amadurecimento, enfim, ao aprender o que realmente importa: ele trocaria continuar morrendo e voltando à vida para sempre para poder voltar uma única vez, pela última, para ajudar o pai e impedi-lo de morrer afogado, depois de eles terem se reencontrado dentro da barriga de um monstro e terem conseguido encontrar uma maneira de escapar usando o nariz de Pinóquio que cresce como uma árvore toda vez que ele mente. Essa é uma sequência linda e uma atitude nobre do “simples boneco de madeira”, que dá a própria vida pelo do pai, morrendo afogado em seu lugar… a fada azul, no entanto, concede ao Grilo Falante o pedido que prometera a ele, e o Grilo pede o Pinóquio de volta.

E, dessa vez, ele vive “como um garoto normal”. Até que o pai e os amigos tenham partido.

Ele continua por aí… um dia talvez também seja sua hora.

Por fim, gostaria de comentar sobre a trilha sonora de “PINÓQUIO por Guillermo del Toro”, algo que curiosamente me pegou de surpresa porque eu não tinha certeza de que seria um musical – e a música está perfeitamente inserida na narrativa para intensificar as emoções da história contada, como acontece com “My Son” no início do filme, a música que Geppetto canta para Carlo, ou “Ciao Papa”, a música que Pinóquio canta em homenagem ao pai, repleta de amor, saudade e melancolia. “Pinóquio” é um filme LINDÍSSIMO, que nos diverte, nos emociona e nos deixa pensativos no fim… mais uma vez, o grande contador de histórias Guillermo del Toro entregando uma das maiores e mais impactantes obras cinematográficas do ano. Um espetáculo admirável!

 

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